O Piano de Carlos Gomes

O Piano de Carlos Gomes

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Fotos do Piano de Carlos exposto no Museu Carlos Gomes de Campinas
Feitas por Genaro C Scriptore em 21 de junho de 2024

O estado do Pará recebeu e acarinhou Antonio Carlos Gomes desde sua chegada no vapor Obidense em 14 de maio de 1896 até seu último suspiro em 16 de setembro do mesmo ano. Não obstante tanto carinho, os governantes paraenses, autoridades e o povo prestaram sinceras homenagens funerárias ao maestro Carlos Gomes, filho de Campinas.

Carlos Gomes trouxe para o Pará poucos bens, pois já havia perdido a maioria deles, incluindo sua coleção de objetos de arte, joias e dinheiro. Salvou-se apenas o piano que o acompanhou até o Pará.
Gomes foi guiado ao Pará pelas mãos do ilustre governador da época, doutor Lauro Sodré, que criou o Conservatório de Belém e confiou ao maestro o cargo de Diretor.

Em 14 de março de 1914, o jornal “Jornal Pequeno” de Recife republicou uma entrevista com o maestro Gama Malcher, concedida ao jornalista João Alfredo de Mendonça do jornal “Folha do Norte” do Pará, em 15 de fevereiro de 1914[1]. Na entrevista, o maestro paraense Gama Malcher, em conversa amistosa com João Alfredo de Mendonça, confirma:

“…posso afirmar sem receio de contestação, que o piano de Carlos Gomes foi adquirido pelo benemérito doutor Lauro Sodré pela importância de 5:000$000. …Lauro Sodré teve conhecimento das dificuldades financeiras do maestro, e com aquele seu espírito generoso e protetor, mandou dar-lhe o dinheiro, mas não querendo nem de leve ferir os sentimentos do genial brasileiro, insinuou que essa importância representava a venda do seu piano ao Estado. …o piano continuou em poder de Carlos Gomes até a sua morte, pois o governador nunca pensou em privar o maestro da companhia de seu piano.”

Na entrevista, Gama Malcher que exerceu o cargo presidente do Instituto Carlos Gomes, confessa que após a morte de Carlos Gomes foram retirados de sua casa e enviados para o Instituto dois objetos: o piano e um relógio de parede de forma octogonal que uma mão amiga se encarregou de parar as 7 horas e mais ou menos 10 minutos, hora da morte de Carlos Gomes. Segundo Gama Malcher, o piano teria sido um presente do imigrante alemão e fabricante de pianos no Canadá, Heitzmann & Son, admirador de Carlos Gomes. E completava que o instrumento nunca havia se separado do maestro, acompanhando-o em viagens para Itália e Brasil.

Em 17 de outubro de 1917, o mesmo jornal de Recife, “Jornal Pequeno”, reeditou uma crônica do maestro Ettore Basio, originalmente publicada na “Folha do Norte”[2] do Pará, informando que, ao percorrer o sótão do Teatro da Paz em companhia do artista Corbiniano Villaça, deparou-se com o piano de Carlos Gomes em total abandono. Segundo Ettore, o piano teria sido recebido como prêmio pela participação de Carlos Gomes na Exposição Internacional de Chicago em 1893.

Conforme atesta a Revista do Centro de Ciências, Letras e Artes de 1927[3], um sócio correspondente do Centro de Ciências, o senhor Armando Nascimento, ao chegar em Belém, tomou conhecimento pela leitura dos jornais, provavelmente da “Folha do Norte”, de que no Teatro da Paz encontrava-se abandonado o piano de Carlos Gomes, que teria sido guardado durante muito tempo na Associação Comercial de Belém. Sem relações pessoais suficientes para ajudá-lo, o senhor Armando enviou uma carta ao então governador, doutor Enéas Martins, solicitando a guarda do piano para o Centro de Ciências, Letras e Artes, com a proposta de se encarregar de todas as despesas de embalagem e transporte do piano para Campinas. A resposta de sua carta não veio, e o governador foi deposto meses depois, assumindo o governo Lauro Sodré no ano de 1917, eleito indiretamente pela Assembleia Legislativa do Pará.

Tomando ciência do estado do piano de Carlos Gomes, o governador Lauro Sodré, pela amizade que nutria pelo maestro e na tentativa de salvar o objeto histórico de valor sentimental inestimável, confiou-o à Associação de Imprensa do Pará, cujo presidente na ocasião era o jornalista, escritor e político doutor Manuel Lobato, fundador da Academia de Letras do Pará e do Instituto Histórico do Pará.

Passaram-se quatro anos, e o piano de Carlos Gomes continuava em uma caixa, suja e empoeirada, no prédio alugado pela Associação Vasco da Gama, pois a Associação de Imprensa do Pará, sem sede própria, abandonara vários móveis e caixas, entre eles o piano de Carlos Gomes. A Associação Vasco da Gama já reclamara várias vezes para que fossem retirados os móveis e caixas da Associação de Imprensa do Pará.

O senhor Armando então solicitou ao Centro de Ciências que fosse feito um ofício ao governador que assumira em 1925 o governo do Pará, o médico doutor Dionísio Ausier Bentes, com o propósito de conseguir o piano de Carlos Gomes para o Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) na cidade de Campinas.

Por motivos não determinados, o ofício do Centro de Ciências se extraviou, fato conhecido somente depois da entidade receber em maio de 1926 um telegrama do senhor Armando pedindo providências da diretoria do Centro de Ciências. Sem se dar por vencido, Armando enviou uma carta para o secretário geral do Centro de Ciências, informando que, em conversa com o ex-deputado Manuel Lobato, que exercia o cargo de ajudante de ordens do governador eleito em 1º de fevereiro de 1925, doutor Dionísio Ausier Bentes, narrou um fato interessante que provavelmente seria um entrave para a vinda do piano para Campinas. Este fato já havia sido relatado pelos maestros Gama Malcher e Ettore Basio, em 1914 e 1917, respectivamente.

Assim descreve o insigne e brioso senhor Armando Nascimento as palavras trocadas entre ele e o doutor Manuel Lobato:

“Sua Excelência, o governador, poderia dar o piano para Campinas ou para o Museu, mas com a permissão do Congresso, pois que o piano é propriedade do Estado”.

A fala de Manuel Lobato deixou o Senhor Armando cismado a ponto de perguntar o motivo, a explicação para o piano ser propriedade do Estado. A resposta veio imediatamente:

“Sim, Carlos Gomes tinha caucionado o dito piano ao Estado, pela quantia de cinco contos de réis: que ele estando em certa ocasião em precárias condições e tendo recebido de seu filho ou filha, que adoecera, pedido de auxílio de certa importância e precisando socorrê-lo e tendo acanhamento de pedir à importância precisa a alguém, foi com o governador de então e ofereceu o piano, que se conservou em seu poder até sua morte, sendo somente retirado de sua casa logo após a sua morte”.

No mesmo mês de maio de 1926, duas revistas ilustradas do Rio de Janeiro publicaram matérias sobre o piano de Carlos Gomes, informando que seu destino seria o Museu Histórico Nacional. Uma delas foi a Revista Ilustrada Fon Fon, Ano XX, número 33, de 14 de agosto de 1926, e a outra foi a Revista Ilustrada Paratodos[4], de 8 de maio de 1926.

Quanto à revista ilustrada Fon Fon, o Secretário Geral não poupou palavras, elaborando um extenso texto que demonstrava que o articulista da revista e a Associação de Imprensa estavam trabalhando juntos com o objetivo único de enviar o piano para o Museu Histórico Nacional.

Fica claro pelas cartas trocadas entre o Senador Sodré e o Centro de Ciências que não havia nada de estranho, bairrista ou leviano entre o Senador e o Centro. Apenas um não sabia do interesse do outro, e Lauro Sodré sugeriu que o piano de Carlos Gomes fosse para o Museu Histórico Nacional, baseando-se na carta do Presidente da Associação de Imprensa do Pará, doutor Manuel Lobato.

O nobre Secretário Geral do Centro de Ciências, Celso Ferraz de Camargo, publicou na Revista do Centro de Ciências a carta de 1º de junho de 1926 do Presidente da Associação de Imprensa, doutor Manuel Lobato, ao Senador Sodré. Na carta ele informava que muitos sócios da Associação de Imprensa não concordavam com a saída do piano de Belém, mas que por concordância com o Governador e com Lauro Sodré, o piano seguiria para outra cidade. Aguardavam uma carta do diretor do Museu Histórico Nacional, insinuando que isso levaria tempo, o tempo suficiente para a reorganização da Associação de Imprensa.

Após receber o telegrama do Senhor Armando em maio de 1926, o Centro de Ciências emitiu um segundo ofício ao Governador do Pará, datado de 31 de maio de 1926, solicitando a guarda do piano de Carlos Gomes. No ofício o Centro nomeava e autorizava o Senhor Armando Nascimento, morador da Rua Senador Barata, 33-A, como procurador do presidente do Centro de Ciências, Carlos Francisco de Paula, para agir e tomar decisões referentes a este assunto junto ao governo do Pará.

Ao receber este segundo ofício do Centro de Ciências, o Governador doutor Dionísio Ausier Bentes mandou publicar em 17 de junho de 1926 nos jornais do Estado do Pará a seguinte mensagem governamental dirigida ao Congresso Paraense:

“Levo ao conhecimento do Congresso Legislativo do Estado, por intermédio do Senado, que o Centro de Ciências Letras e Artes da Cidade de Campinas, Estado de São Paulo, em longa e substanciosa exposição apela para que o Governo do Estado do Pará lhe conceda a guarda do piano que pertenceu ao grande e inolvidável maestro Antonio Carlos Gomes…
…Rogo, pois, ao Congresso Legislativo que se manifeste a respeito, votando, se achar acertado, uma autorização para ser dado àquele ou outro qualquer lugar condigno que mereça deter a preciosa relíquia.
Com os protestos de estima e apreço a Vossas Excelências
Saúde e Fraternidade.”

Em uma outra carta, agora de 20 de agosto de 1926, o Secretário Geral, senhor Celso Ferraz de Camargo, praticamente implora para que o Senador Sodré não apoie a ida do piano para o Rio de Janeiro.

“…rogo-lhe permissão para pedir, implorar mesmo, em nome do direito, da justiça, de Campinas, do Centro e no meu próprio nome: suspenda a vinda dessa relíquia para o Museu Histórico Nacional.”

O Senado Federal enviou para discussão o Projeto Nº 12 de 1926 em 15 de outubro de 1926, o qual não gerou muitas discussões, exceto por algumas observações de dois senadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará e à Associação de Imprensa do Pará: os senhores Luiz Barreiros e Abelardo Candurú, respectivamente. Ambos expressaram a opinião de que o piano não deveria deixar o Pará. Candurú inclusive solicitou que seu voto contra o projeto fosse registrado em ata, argumentando que o piano deveria permanecer no Instituto Histórico e Geográfico.

O projeto foi aprovado na Sala das Comissões do Senado do Estado do Pará em primeira discussão.

Em 19 de outubro ao ser anunciada a segunda discussão do projeto o senador Abel Chermont apresenta uma  emenda ao projeto:

“Artigo Único: onde se lê: ao Centro de Ciências, Letras e Artes da cidade de Campinas, Estado de São Paulo, diga-se: Instituto Histórico e Geográfico do Pará”.

A emenda não foi aprovada e o projeto passou pela terceira discussão no Senado em 20 de outubro com aprovação da maioria.

Na Câmara o projeto recebe parecer favorável em segunda e terceira discussões e foi aprovado unanimemente, no dia 30 de outubro de 1926.

Em 12 de novembro de 1926, foi aprovada a Lei 2.556, autorizando o Governo do Estado do Pará a tomar providências, concedendo ao Centro de Ciências, Letras e Artes a guarda do piano que pertenceu a Carlos Gomes.

O Decreto Nº 4.308, datado de 3 de dezembro de 1926, foi expedido e assinado pelo Governador Dionísio Ausier Bentes e pelo Secretário Geral do Pará, Deodoro de Mendonça.

O Centro de Ciências recebeu um ofício informando a aprovação da Lei e do Decreto através de seu sócio Armando Nascimento, que, por procuração, assinou o recibo de entrega do piano de Carlos Gomes pela Associação de Imprensa do Pará em 8 de dezembro de 1926.

O doutor José Lobo, Secretário do Interior do Estado de São Paulo, recebeu um telegrama do Governador do Pará comunicando que atendera ao pedido do Centro de Ciências, concedendo-lhe a guarda do piano de Carlos Gomes.

Imediatamente, o doutor José Lobo avisou o presidente da Câmara, doutor Antônio Lobo, para dar início aos procedimentos necessários junto ao Centro de Ciências, que já estava em contato com o Presidente do Estado de São Paulo, doutor Carlos de Campos, solicitando ajuda para o traslado do piano para Campinas.[5]

Entre 12 e 17 de novembro de 1927, Armando Nascimento informou à presidência do Centro de Ciências e ao Secretário Geral que o piano foi embarcado no navio “Itaquatiá”.[6]

Em 11 de março de 1928, o piano já se encontrava no Centro de Ciências, Letras e Artes, onde foi utilizado durante uma sessão cívica em homenagem ao Estado do Pará e ao seu governador.[7]

Acertou o maestro Ettore Basio ao se despedir do piano de Carlos Gomes com uma cronica de lamento e de ternura  publicado no Jornal “Folha do Norte” de 8 de dezembro de 1926, que pedimos licença por publicar apenas uma parte:

“Adeus meu velho amigo!”

Ettore Basio.

“Um decreto Governamental te destina e entrega ao Centro de Ciências Letras e Artes, terra natal de seu senhor.

Que lá a tua ossada, seja venerada e respeitada como merece….

…Foste, depois, segregado a uma fria e úmida sepultura no Teatro da Paz, em um compartimento sem luz, sem ar, habitado por cruéis roedores e nocivos insetos.
De lá foste salvo pela misericórdia e pelo coração generoso de Lauro Sodré… que te entregou a Associação de Imprensa do Pará.

Embora sem cordas, sem marfins e sem vida sonora, mudo, como é mudo o oceano em dia de calmaria, eras ainda o precioso piano de Carlos Gomes!

…que o que resta de ti, inspirem os teus novos e ilustres possuidores, o carinho, o amor, o respeito, sentidamente intensos que o Brasil te deve, porque traduziste as fulgurações do maior Genio da América do Sul – “Carlos Gomes”

Adeus meu velho amigo! Adeus! Parte em Paz!”

[1] Jornal Pequeno – PE Edição 0059 de 14 de março de 1914 páginas 1 e 2
[2] Jornal Pequeno – PE Edição 0241 de 17 de outubro de 1917 página 2
[3] Revista do Centro de Ciências Letras e Artes, Ano XXI 54 e 55 de janeiro de 1927, páginas 25 a 41
[4] Revista Ilustrada Para Todos… Ano I de 8 de maio de 1926, impressa nas Oficinas de “O Malho”, Rio de Janeiro, página 38.
[5] Jornal Correio Paulistano Edição 22784 de 26 de dezembro de 1926 página 2
[6] Jornal Correio Paulistano Edição 23091 de 18 de novembro de 1927 página 8
[7] Jornal Correio Paulistano Edição 23187 de 28 de março de 1928 página 3

Sobre o autor

Genaro Campoy Scriptore administrator

4 Comentários

Alcides L. AcostaPublicado em2:22 pm - Jun 22, 2024

Esplêndido resgate esse a que se entregou o incansável e hábil pesquisador Genaro Campoy Scriptore, dono deste informativo blog. O piano de Carlos Gomes, peça que através de renhida disputa, após anos de abandono, depositado que foi no Theatro da Paz, em Belém, PA, sem uso, mudo e esquecido, acabou descoberto por um zeloso admirador do grande Maestro Carlos Gomes. O piano se encontra zelosamente preservado e exposto aos visitantes do Museu Carlos Gomes, no Centro de Ciências, Letras e artes. Parabéns ao pesquisador Genaro Scriptore.

    Genaro Campoy ScriptorePublicado em4:06 pm - Jun 22, 2024

    Perfeito Presidente Alcides.
    Objeto histórico totalmente disponível no Centro de Ciências, Letras e Artes para a comunidade Campineira, sonhar com o maestro dedilhando uma quadrilha ou uma modinha.

Edna Maria Toledo França SuterPublicado em3:31 pm - Jun 22, 2024

Como sempre, meu amigo Genaro foi perfeito em trazer para os campineiros fatos que contribuem para enriquecer nosso conhecimento…👏👏👏👏👏👏

    Genaro Campoy ScriptorePublicado em4:07 pm - Jun 22, 2024

    Obrigado pelo incentivo.
    Tempos em que precisamos cultivar ainda mais o espírito cívico adormecido nos nossos amigos e personagens que vivem em Campinas.

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