Memória social e o objeto biográfico.

Memória social e o objeto biográfico.

Artigo-Estoico-CCLA-1024x277 Memória social e o objeto biográfico.

 

O cotidiano do cidadão de Campinas, suas interações com a cidade e a navegação pelas suas ruas não bastam para evocar a memória coletiva e social de uma localidade que tem suas raízes culturais, históricas e tradições, profundamente enraizadas em seu tecido urbano central.

O centro de Campinas é rico em objetos, símbolos, construções e marcos que, lamentavelmente, sofrem com atos de vandalismo, depredação e pichações. Isso evidencia que a preservação do passado não reside apenas nos monumentos e no património público, mas sim, na compreensão e no reconhecimento da história por parte da comunidade.

A valorização e a reconstrução do legado histórico campineiro, no presente, dependem do acesso à informação e do conhecimento da realidade histórica, que moldaram a sociedade local. É somente por meio desse entendimento que podemos verdadeiramente apreciar e preservar a herança cultural que nos foi deixada.

O Centro de Ciências, Letras e Artes é diretamente afetado pela deterioração que assola o entorno central de nossa urbe. Como membro desta venerável instituição, que abriga museu, memoriais, uma biblioteca e coleções de objetos biográficos e culturais, de grande valor histórico, busco contribuir por meio de pesquisas e publicações, para a compreensão e valorização dessas coleções.

Recentemente, ao preparar uma palestra sobre Antonio Carlos Gomes e ao examinar uma foto datada de 1936, redescobri a importância de uma peça localizada na entrada principal do Edifício “Cidade de Campinas”, na Rua Regente Feijó, 1251. Esse objeto, que ilustro neste texto, revela-se um testemunho significativo da história e do esforço na preservação do registro do local onde nasceu Carlos Gomes.

Minha compreensão inicial sobre tal objeto passou por uma transformação radical quando me aprofundei na pesquisa e descobri que foi criado durante as celebrações de inauguração do monumento-túmulo de Carlos Gomes, situado na Praça Antônio Pompeo. Essa peça foi concebida como parte da homenagem ao ilustre maestro e compositor de “Il Guarany”, marcando um momento solene em sua memória, após seu falecimento.

No dia 2 de julho de 1905, findas as solenidades de inauguração do monumento-túmulo, João César Bierrenbach convidou a comissão e uma grande massa de populares para seguirem a pé desde o monumento, pela Rua da Cadeia, hoje Rua Bernardino de Campos, até o prédio de número 50 da Rua Regente Feijó, que hoje corresponde ao número 1.251. Local onde nasceu Antonio Carlos Gomes, habitado na época pela família de Theodoro de Souza Campos.

Na frente da residência em que Carlos Gomes veio à luz, César Bierrenbach, em poucas palavras, convidou Rodrigo Octavio, Lúcio Mendonça e os guardas da marinha, Ignácio Amaral e Sebastião Lobo, para descerrarem a cortina que cobria a lápide comemorativa, fixada na parede frontal da residência.

Dois anos depois, no dia 19 de julho de 1907, o presidente do Centro de Ciências, Letras e Artes, doutor Souza Brito, recebeu do chefe da Locomoção, da Estrada de Ferro Mogiana, doutor Carlos William Stevenson, uma placa fundida em bronze. Esta placa se destinava a substituir a lápide de mármore negro que, por iniciativa de César Bierrenbach, havia sido descerrada em 2 de julho de 1905.

A placa trazia um escudo sobre duas colunas, ladeadas por palmas, coroado por uma lira entre dois ramos de café e carvalho. O letreiro no interior da placa trazia os mesmos dizeres da lápide de mármore original:

“Na casa aqui outr’ora existente em XI-VII-MDCCCXXXVI nasceu Carlos Gomes – Homenagem do Centro de Sciencias Letras e Artes a II-VII-MCMV”

A casa e a placa comemorativa coexistiram por mais de 60 anos, até a construção do Edifício “Cidade de Campinas”, que abriga salas comerciais. Esse edifício respeitosamente incorporou a placa de 1907 até meados de 2012, quando ocorreu o furto da placa de bronze da frente do edifício.

O Centro de Ciências, Letras e Artes não se daria por vencido. O vandalismo não intimidaria a diretoria, capitaneada pelo engenheiro Marino Ziggiatti e seus pares Duílio Battistoni Filho, Luiz Carlos Ribeiro Borges, Gustavo Mazzola, Arley Bonafé Zarattini e tantos outros incansáveis na preservação da memória social. Em 12 de setembro de 2012, conforme menciona a ata 205ª, foi instalada uma nova placa indicativa do nascimento de Carlos Gomes, exatamente com os mesmos dizeres da placa original, agora em cimento e mármore, patrocinada integralmente pelo senhor Arley Bonafé Zarattini.

A atual diretoria do Centro de Ciências, Letras e Artes mantém sua dedicação inabalável, enfrentando corajosamente os desafios que se apresentam, incluindo a triste realidade de sua sede parcialmente pichada e diversas estátuas pela cidade vandalizadas, entre elas o Monumento-túmulo de Carlos Gomes, o busto de César Bierrenbach, o busto de Guilherme de Almeida, o busto de Padre Anchieta e outros monumentos que também foram alvo desses atos de vandalismo.

O vandalismo contemporâneo, praticado nas madrugadas, transcende à mera agressão. Assemelha-se mais a um estilo de vida, praticado em segredo, com rostos ocultos da sociedade, revelando-se apenas aos seus pares.

Além disso, há aqueles que se dedicam à apropriação ilícita de peças metálicas, destinadas à venda ilegal para sucateiros e falsificadores, desprovidos de ética e moral. Esses indivíduos muitas vezes são rotulados como ignorantes culturais, vivem uma existência fugaz e desprovida de significado, deteriorada pelo uso indiscriminado de substâncias químicas que corroem, irreversivelmente, sua saúde mental, emocional e física.

Diante desse desafiante cenário do vandalismo, o fortalecimento do senso de pertencimento à comunidade e à sociedade, emerge como única solução promissora. Ao integrar cada vez mais o indivíduo nas relações sociais, podemos cultivar um orgulho coletivo, responsabilidade compartilhada e um compromisso renovado com a vida comunitária.

Investir na conscientização e na educação dos nossos jovens representa um caminho eficaz para mitigar comportamentos destrutivos e moldar cidadãos responsáveis e comprometidos com o bem-estar coletivo.

Minha concordância com Sêneca, em sua obra “Diálogos”, especialmente na Introdução, reflete minha convicção de que seus ensinamentos oferecem base sólida para abordar temas complexos, como o vandalismo e desafia-nos na busca de soluções inovadoras:

“…sempre haverá uma oportunidade, por mais adversos que sejam os tempos, de ser útil à comunidade, mesmo se for só sair para a rua e ser visto; não se deve intimidar a princípio ou, tímido, esconder-se no seu canto; pelo contrário, pode-se até ir para outra cidade ou terra que lhe seja mais favorável, pois o cosmopolitismo estoico lhe confere o status de cidadão do mundo.” (Diálogos – Introdução – página 41 Editorial Gredos, S.A – Madrid – Espanha

Sobre o autor

Genaro Campoy Scriptore administrator

4 Comentários

BethPublicado em1:26 pm - Jun 4, 2024

Concordo com sua visão: educar para preservar.

Alcides L. AcostaPublicado em1:38 pm - Jun 4, 2024

Parabéns, Genaro C. Scriptore! Seus temas históricos, ricos em detalhes muito bem pesquisados, nos esclarecem sobre um passado que não vivenciamos, porém, após lermos sobre ele, muito nos encantaria viver. Sua reflexão, nesta crônica, nos trouxe belos e nostálgicos momentos da Campinas que deixaram saudades.

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