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Grita, pois, a plenos pulmões, não te contenhas, levanta a tua voz como um Shofar, uma trombeta, e faz ver ao povo a sua própria transgressão, mostra à Casa de Jacó o seu pecado!
Isaías 58 – 1 |
Começo a escrever estas linhas com olhos nas palavras de Eça de Queiróz dirigidas ao seu oponente Pinheiro Chagas na questão entre Portugal e o Brasil, destacando as espécies de patriotismo.
O primeiro deles são aqueles que respeitam as tradições, que dirigem todos os seus esforços para uma nação viva, que trabalha, produz, pensa e sofre. Ocupam-se da pátria contemporânea, que conhece suas aspirações e dirige todo o esforço para torná-la mais livre, mais forte, mais culta mais sábia, mais próspera e elevada entre as outras nações.
Nada do que pertence à pátria lhes é estranho: admiram decerto Afonso Henriques, mas não ficam para todo o sempre petrificados nessa admiração: vão por entre o povo, educando-o e melhorando-o, procurando-lhe mais trabalho e coorganizando-lhe mais instrução, promovendo sem descanso os dois bens supremos — ciência e justiça.
Põem a pátria acima do interesse, da ambição, da gloríola; e se têm por vezes um fanatismo estreito, a sua mesma paixão diviniza-os. Tudo o que é seu o dão à pátria: sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força. Dão-lhe sobretudo o que as Nações necessitam mais, e o que só as faz grandes: dão-lhe a verdade. A verdade em tudo, em história, em arte, em política, nos costumes. Não a adulam, não a iludem: não lhe dizem que ela é grande porque tomou Calicute, dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: “Tu és pobre, trabalha; tu és ignorante, estuda; tu és fraca, arma-te! E quando tiveres trabalhado, estudado, quando te tiveres armado, eu, se for necessário, saberei morrer contigo!”
Eis o nobre patriotismo dos patriotas.
O outro patriotismo é diferente, a pátria não é a multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna, mas, uma outra pátria, aquela que no passado conquistou povos e países, que arrasou aldeias, expulsou árabes e mouros, traficou produtos e é comemorada em cantorias e serenatas.
Esse sabe discursar com os olhos e o lábio em luxuria: “Oh, pátria! Oh, filha! Ai, querida! Oh, pequena! Que linda és!”, exatamente como tinha dito na véspera, num bordel, a uma prostituta barata.
Esse, coisa pavorosa! não ama a pátria, namora-a; não lhe dá obras, impinge-lhe odes. Esse, quando a pátria se aproxima dele, com as mãos vazias, pedindo-lhe que coloque nelas o instrumento do seu renascimento — põe lá (ironia magana!), o quê? Os louros de Ceuta! Quando o povo lhe pede mais pão e mais justiça, responde-lhe, torcendo o bigode: “Deixa lá… Tu tomaste Cochim.”
A pátria brasileira com mais de 214 milhões de brasileiros não conseguiu ainda fazer a autocrítica sugerida por Eça de Queiroz, no século XIX. É uma nação que não dispõe dos recursos necessários para fazer os devidos investimentos em infraestrutura, é pobre, transfere para o estado as responsabilidades sociais e evita o esforço da conquista pelo trabalho, pelo estudo e pela formação de brasileiros comprometidos socialmente. Está desarmada e desprotegida diante do crime, do tráfico de drogas, sem escolas, sem saneamento e com tendência para anular qualquer ação que busque melhorar a sociedade através do esforço individual. Acredita em utopias e fantasias produzidas por falácias e promessas que nunca se cumprirão, pois estão baseadas em teorias coletivas que extrapolam as fronteiras do seu território, sempre na mais valia dos operários, que segundo Karl Marx no Manifesto Comunista, seção II, deixa claro: “Os operários não têm pátria”, mas são os próprios que juntamente com trabalhadores e consumidores continuam pagando a conta da corrupção e dos desmandos.
Por isso repetir as palavras do grande baiano Aristides César Spínola Zama, médico, político e escritor brasileiro deputado federal, conhecido como Cézar Zama, que se insurgiu contra Rui Barbosa que denunciou a perversidade da Guerra de Canudos e legou aos brasileiros o “Libelo Republicano”, texto que pode ser usado na atualidade sem reservas:
Quando os homens de bem não logram compreender e realizar os desígnios da Providência, encarregam-se disto os desonestos. Sob o açoite da necessidade e no meio da impotência geral surgem sempre almas corrompidas, e audazes, as quais como que adivinham o que pode acontecer e o que se pode tentar, e tornam-se instrumentos de um triunfo, que não lhes cabe naturalmente, mas do qual aproveitam-se para colher-lhe os frutos” escreveu Guizot. É o que está sucedendo no Brasil.
Somos respeitadores da autoridade legal e legitimamente constituída. Acatamos as leis do país, e ainda mais as leis morais, que, por não serem escritas, não absolvem, todavia os seus transgressores da reprovação geral. Se nos submetemos aos abusos, que diariamente se multiplicam entre nós, é porque não temos meios e recursos para reagir contra os seus autores; nunca, porém, abdicaremos o último dos direitos dos vencidos – o de protestar com energia contra os demolidores da pátria e da república. Deus fez-nos racional e pensante; exercemos um direito inerente à nossa natureza. Só os vermes toleram ser calcados aos pés sem protestarem.
Diremos só a verdade; mas nua e crua. Novos e mais fundos ódios acumular-se-ão sobre a nossa cabeça; haverá, porém, mérito em afrontá-los, desde que são nobres e elevados os intuitos, que nos dirigem.
Os ódios passarão, e restar-nos-á a tranquilidade da consciência, que não abandona jamais os que cumprem um dever. “Quia non in solo pane vivil homo, sed in omni Dei verbo.” Os poderosos do dia não nos intimidam; só tememos AQUELE que nos pode matar a alma.
Os índices estatísticos são reais e absolutos na amostragem de uma população que depende essencialmente de uma grande parcela de pessoas, mais de 62,3% que sustentam através do seu trabalho e seus impostos 37,7% de pessoas economicamente inativas com menos de 10 anos e mais de 65 anos. Uma sociedade que não têm mais caminhos para aumentar burocratas e funcionários públicos pendurados em estruturas públicas ineficientes.
Não há como sustentar uma sociedade sem trabalho e estudo, entregando um tipo falso de cultura em aglomerações de entretenimento enquanto os valores culturais do país são entregues de forma constante ao desprezo e a ignorância. As instituições culturais como centros de memória, museus e valores culturais são alijados da maioria populacional que se contentam com megas eventos populares apoiados com recursos governamentais em troca de alguns quilos de alimentos retirados das prateleiras vazias dos trabalhadores.
Diante de tanta pobreza e miséria, não poderia deixar de trazer o “Sermão do Bom Ladrão”, se é que exista algum bom ladrão, proferido pelo padre António Vieira em 1655 criticando a arte de roubar, comparando o pequeno ladrão que rouba para comer com o grande ladrão que rouba império, no meu entender ambos passíveis de reprovação:
“Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigos: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam.
“Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado uma província.”
Como brasileiro, inserido nesta sociedade, com responsabilidades civis especificas de pai de família, não posso deixar de gritar a pleno pulmões, como um shofar, por uma sociedade mais justa, como uma trombeta que pede ajuda no combate a transgressão que se principia na sociedade brasileira dividida, muito perto de descaminhos de violência que provocarão muito mais dor e sofrimento além dos que já são inerentes a nossa existência.
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