Arquivo da categoria Temas Políticos, Sociais e de Humanidades

Oração aos Moços

Rui-Barbosa-228x300 Oração aos Moços

“Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado”

Ruy Barbosa de Oliveira

O maravilhoso da literatura é descobrir que valores pregados pelos autores que temos consideração e respeito, ainda que em séculos anteriores, são valores tão reais que podem trazer à consciência, atualmente, qualquer ser menos esclarecido que tenha o desejo de evolução.

Nesta noite, me vieram cair de novo em mãos o discurso do eminente Rui Barbosa aos bacharelandos da Faculdade de Direito de São Paulo no ano de 1920, um singelo livreto de 55 páginas, muito conhecido nos meios acadêmicos da área do Direito como a “Oração aos moços”.

Quantas vezes li e reli os valores exaltados na “Oração aos moços”, escrito com base nos mais conceituados filósofos da antiguidade, nos valores do Padre Manuel Bernardes e suas várias obras escritas no século XVII, nas Sagradas Escrituras e carregado de uma emoção clara daquele que soube escolher profissão com dignidade.

Esta noite, eu aprenderia um pouco mais com aquele que foi o “Águia de Haia”, o “Grande Ruy”, como meu avô materno com seu sotaque espanhol se referia ao emérito homem público Ruy Barbosa de Oliveira.

Segundo Francisco da Silveira Bueno, outro grande estudioso da arte da oratória, salientando as qualidades da redação do “Grande Ruy”, coloca toda sua interpretação na tese de que ele era um orador para ser lido e não para ser ouvido.

O “Grande Ruy” doente, sem poder comparecer à solenidade de formatura como o paraninfo escolhido de tão seleta turma, escreveu o discurso, cujas páginas foram recolhidas por alguns formandos na cidade de Petrópolis e lido pelo diretor da faculdade, Reynaldo Porchat, diante da impossibilidade de sua apresentação no evento.[1]

Detalhes à parte, sem muitas pretensões ao folhear a página 46[2],não consegui desviar minha atenção na profundidade com que o grande escritor utiliza dois textos maravilhosos para ensinar-me o valor daquele que julga e é julgado. O primeiro se reflete nas Escrituras: “Não cometam injustiça em um julgamento; não favoreçam o pobre, nem procurem agradar os poderosos, mas julguem o seu próximo com justiça.”[3] O segundo, o “Grande Ruy”, vai buscar na fonte da literatura luso-brasileira, nos sermões e práticas do Padre Manuel Bernardes:

“Se não tens animo para romper pela impiedade, não queiras ser juiz. Bem praticou esta virtude Canuto Rei dos Vândalos, que mandando justiçar uma quadrilha de salteadores, e pondo um deles embargos, de que era parente do Rei, respondeu: Pois se provar ser nosso parente, razão é que lhe façam a forca mais alta.

É não só nas obras de justiça, mas também de caridade devemos evitar exceção de pessoas.” [4]

Hoje ao constatar os favorecimentos judiciais recebidos pelos amigos do Rei, justificados pela ampla defesa e do contraditório, onde os embargos não produzem a forca alta e nem baixa e ficam todos à mercê do transito em julgado.

Ao ver os poderosos se locupletando com pedidos de proteção a família, aos amigos e a corte que esta acima da lei e da justiça, sinto que a justiça é só mais um meio de vida, para não dizer de negócios.

Ao ver a quadrilha de salteadores subjugar a sociedade entre zombaria, escárnio e menosprezo, tenho certeza de que os “moços” da oração do “Grande Ruy”, das duas uma, ou não escutaram bem suas palavras, ou pior, são totalmente ignorantes quanto ao seu significado e relevância.

“Como vedes, senhores, para me não chamarem a mim revolucionário, ando a catar minha literatura de hoje nos livros religiosos.

Outro ponto dos maiores na educação do magistrado: corar menos de ter errado que de se não emendar. Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro, o pior é que se não corrija. E, se o próprio autor do erro o remediar, tanto melhor; porque tanto mais cresce, com a confissão, em crédito de justo, o magistrado, e tanto mais se soleniza a reparação dada ao ofendido.”[5]

E aprendi, nesta noite, pelas palavras de sua “Oração”, mesmo não sendo tão moço, que: “Não há justiça, onde não haja Deus”.[6]

Ainda sonho como o “Grande Ruy”, que ainda haveremos de ver um judiciário composto de bacharéis que, “não se colocarão baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Que servirão aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade Amarão a Pátria e amarão aos pobres enternecidamente, guardando a fé em Deus, na verdade e no bem.”[7]

[1] https://economia.uol.com.br/blogs-e-colunas/coluna/reinaldo-polito/2019/02/26/rui-barbosa-era-ou-nao-bom-orador.htm consultado em 09 de julho de 2020, às 21:00 horas.

[2] Oliveira, Ruy Barbosa de – Discurso aos bacharelandos da Faculdade de Direito de São Paulo em M.CM.XX -Editora Mensário Acadêmico Dionysus, São Paulo, 1921, pág. 46

[3]BÍBLIA, A. T. Levítico 19 vers. 15, in Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional – Geográfica, São Paulo, 2000 pág. 89

[4] Bernardez, Padre Manoel – Sermões e Práticas, Primeira Parte, Dedicada a Soberana Rainha do Céu – Oficina Real Deslandesiana, Lisboa, 1711, pág. 263-264

[5] ibidem 2

[6] Ibidem 2, pág.47

[7] Ibidem 2, pag. 49

 

Os Jantares de Madame Maintenon

Edouard-Manet.-Um-bar-no-Folies-Berger.-1882-300x224 Os Jantares de Madame Maintenon

Édouard Manet-Um bar no Folies-Bèrger 1882

A pesquisa, muitas vezes, se assemelha a um vício: uma vez capturado pela atividade, torna-se difícil abandonar o assunto pesquisado. De forma quase obsessiva, ela apresenta um grau de abstração que nos leva por caminhos inesperados. Foi assim que, durante um estudo sobre “Gabinetes de Leitura”, me vi imerso na história da França, de Luís XIV, da Marquesa de Maintenon, da nobreza e dos jantares palacianos.

Em 13 de agosto de 1837, surgiu no Rio de Janeiro um jornal intitulado Gabinete de Leitura – Serões das Famílias Brasileiras. Seu objetivo era incentivar a leitura, o entretenimento e as diversões para as famílias brasileiras. Na introdução ao público, o jornal apresentou um conto sobre Maintenon, sem mencionar seu nome completo – Madame Françoise d’Aubigné, última e notável figura feminina na vida de Luís XIV. Essa comparação foi utilizada para ilustrar os propósitos do jornal em lançamento. O paralelo reside nas atitudes de Madame de Maintenon, que inicialmente serviu ao rei como governanta de seus filhos ilegítimos, mantendo-os longe dos olhares indiscretos da corte, e posteriormente, como concubina, estrategicamente seduzindo e casando-se com o rei em segredo.

A força desse editorial e da comparação reside nas palavras que traduzem o verdadeiro significado dos “Gabinetes de Leitura”. Por isso, julgamos interessante recontar essa história aos leitores.
O editorial do jornal convidava o público a frequentar suas páginas, assim como Madame de Maintenon atraía sua audiência. Sem fortuna ou posição social que a sustentasse na corte, Maintenon usava sua simpatia e, principalmente, suas conversas agradáveis e despretensiosas para reunir a alta sociedade francesa e aqueles que desejava cativar em jantares regados a alegria. Embora a quantidade e a qualidade da comida não fossem à altura das expectativas dos convidados, todos ficavam encantados com as histórias e anedotas de Madame Maintenon, contadas com perspicácia e sagacidade. Ao final, saíam de sua casa sem perceber a escassez dos pratos.

Em certa ocasião, o criado que servia à mesa, seja por simplicidade ou malícia, dirigiu-se a Maintenon em voz baixa, mas suficientemente alta para ser ouvido por todos, e disse:

“– Minha senhora, conte alguma história a estes senhores, pois o assado queimou e não poderá ser servido.”

Maintenon não se deixou abalar. Elaborou uma narrativa que, se não saciou a fome dos convidados, ao menos os divertiu, inserindo na história suas vulnerabilidades financeiras, a verdadeira razão pela qual não os podia presentear com um banquete mais farto. Esse episódio lhe conferiu a reputação de mulher mais espirituosa de seu tempo e a fez ser indicada para governanta dos filhos de Luís XIV. Desde então, os nobres e plebeus que a visitavam não diziam “vamos jantar na casa de Madame Maintenon”, mas sim “vamos conversar com Madame Maintenon”.

Assim como o editorial do jornal, que seguia o exemplo de Maintenon, convido os leitores a refletirem sobre os convites e os propósitos dos jantares e celebrações que, nos próximos meses, serão promovidos pelos futuros candidatos ao governo municipal. Esses eventos, voltados a influenciadores e à mídia, buscam conquistar apoio, serviços e, claro, votos. Uma notícia que surge de um jantar, tal como os de Maintenon, pode se revelar uma piada, um “lero-lero” ou mesmo mentiras, criadas com o objetivo de enganar.

Será que as “fake news” tiveram origem no século XVII? A resposta, meu amigo, talvez esteja sussurrando ao vento, como diria a canção. E não nos esqueçamos: com a ajuda de um bom maître, um bom atendente e um bom restaurante, podemos transformar qualquer cenário em um mero entretenimento sem consequências.

Para concluir, a bela frase do padre Diogo Antônio Feijó sobre Bernardo Pereira de Vasconcelos pode servir como alerta e critério para avaliar tais eventos: “…um livro para ser lido e depois lançado ao fogo”.

 

Texto inspirado e extraído do Livro Freguesia, Vila e Cidade de uma Campinas Velha 1774 – 1889, Capítulo 18, páginas 336 e 337. Autoria de Genaro Campoy Scriptore

Semana Carlos Gomes – 16 de setembro de 2024

 

Discurso de Genaro Campoy Scriptore,
orador oficial do Centro de Ciências, Letras e Artes,
proferido na Praça Antônio Pompeo
durante a cerimônia em homenagem aos
128 anos do falecimento de Antônio Carlos Gomes.

 

 

Foto-discursandomod-222x300 Semana Carlos Gomes - 16 de setembro de 2024

Discurso proferido em 16/09/2024

 

Boa tarde a todos os presentes.

Reitero meus sinceros agradecimentos a Comissão da Semana Carlos Gomes, a Prefeitura de Campinas ao Centro de Ciências, Letras e Artes e em especial a todos presentes a este evento de hoje enriquecendo ainda mais esta celebração.

Uma grande questão me instiga a pensar: O que celebramos hoje? A data de morte de Antonio Carlos Gomes?

Não! Celebramos a vida de um brasileiro, um paulista, um campineiro ícone da música Universal. Um brasileiro ( que soube honrar a sua pátria nas mais remotas paragens mundiais), um paulista ( que tem seu nome gravado em quase todas as cidades do Estado) e um campineiro (que honrou o nome de sua cidade e deu projeção aos seus concidadãos).

Antonio Carlos Gomes nasceu em 11 de julho de 1836, e foi batizado em 19 de julho de 1836, filho de Manoel José Gomes, conhecido como “Maneco Músico” e de Fabiana Maria Cardoso, conhecida como “Nhá Biana”. Da união de Maneco e Nhá Biana são gerados dois filhos: José Pedro Sant’Anna Gomes e Antonio Carlos Gomes. Uma grande tragédia marcaria a infância de Sant’Anna Gomes com 10 anos de idade e a de Carlos Gomes com 8 anos: na noite do dia 28 de julho de 1844 “Nhá Biana” foi brutalmente assassinada com um tiro e várias perfurações de uma arma branca semelhante a uma baioneta ou uma faca de caça.

Francisco Quirino dos Santos e Benedicto Octávio foram os dois campineiros ilustres que me guiaram na busca de compreender a vida e a obra de Carlos Gomes.

Benedicto Octávio relata em seu livro “Campinas Antiga” que, no ano de 1846, durante as festividades em homenagem à visita do imperador Dom Pedro II a Campinas, no palanque onde a música era destaque, dois jovens músicos chamavam atenção: os filhos do maestro Manoel José Gomes. As duas crianças morenas, de doze e dez anos, destacavam-se entre os músicos, uma tocando clarineta e a outra tangendo os ferrinhos (triângulo).

Já Quirino dos Santos, que conheceu Carlos Gomes na infância, recorda-se dele tocando triângulo ou flautim na banda que desfilava pelas ruas da cidade. Seu apelido era “Tunico”, uma alcunha que simbolizava tanto seu pequeno porte físico quanto sua grande atividade intelectual. Tunico foi um apelido que Carlos Gomes levou com orgulho por toda a vida.

A juventude de Carlos Gomes foi marcada por grandes aspirações e desejos, mas limitada pela falta de recursos materiais. Ele participava da banda musical, ajudava seu pai, que era mestre de capela, e lecionava música nas fazendas locais. Desde cedo, ele mergulhava no mundo das óperas e dos grandes compositores, compondo quadrilhas, tangos, serenatas e modinhas. A música era sua vida, e seus primeiros trabalhos já demonstravam originalidade e beleza que contrastavam com sua pouca idade e os modestos conhecimentos formais que possuía.

Nos últimos anos da década de 1850, Campinas celebrava as Festas da Semana Santa com grande esplendor. Muitos amigos dos irmãos Gomes estudavam na Academia de Direito de São Paulo desde 1854 e 1855, entre eles Campos Salles, os irmãos Francisco e João Quirino dos Santos, os irmãos Américo e Bernardino de Campos, Rangel Pestana e os irmãos Jorge Miranda e Francisco Glicério — conhecidos como os “moços de Campinas”. Dentre esses estudantes, João Ataliba Nogueira, que mais tarde se tornaria o Barão de Ataliba Nogueira, formou-se em novembro de 1858.

Durante as Festas da Semana Santa, que iam de domingo a domingo, os estudantes costumavam retornar a suas cidades para rever familiares e amigos. Em uma dessas ocasiões, João Ataliba Nogueira convidou colegas, como Antonio Dias Novaes, João Gabriel de Moraes Navarro e Francisco Azarias de Queiroz Botelho, para se hospedarem em sua casa durante as festividades.

Francisco Azarias, um jovem mineiro alto, louro e de olhos azuis, admirador de serenatas, logo reconheceu o talento musical de Carlos Gomes e passou a insistir para que os irmãos Gomes visitassem São Paulo e mostrassem seu talento. Assim, Antonio Carlos Gomes, seu irmão Sant’Ana Gomes e Henrique Luiz Levi chegaram à capital paulista em 15 de julho de 1859, hospedando-se na república de Francisco Azarias. Este, como um verdadeiro empresário, empenhou-se em promover apresentações para os músicos, agendando concertos para os dias 21 e 27 de julho daquele ano.

Durante sua estadia, os três músicos foram convidados a se apresentar em diversas reuniões estudantis, especialmente em repúblicas. A única república com um piano era a do sergipano Francisco Leite Bittencourt Sampaio, onde Antonio Carlos Gomes compôs a música para duas peças importantes: a famosa canção “Quem Sabe” e o Hino Acadêmico da Faculdade de Direito, ambas com letra de Bittencourt Sampaio.

Após diversas apresentações de sucesso em São Paulo, incluindo o sucesso retumbante do Hino Acadêmico, Carlos Gomes seguiu para o Rio de Janeiro para continuar sua formação musical. Lá, ingressou no Conservatório de Música Imperial, onde foi orientado pelo renomado maestro Gioacchino Giannini. Em março de 1860, Carlos Gomes compôs sua primeira cantata, intitulada Salve o dia da Ventura, em homenagem à imperatriz Teresa Cristina.

Apesar de estar doente e febril no dia da apresentação, Carlos Gomes não deixou que isso o impedisse de conduzir sua composição, evidenciando sua dedicação e compromisso com a música. Após a morte de Giannini, ele continuou seus estudos com Francisco Manuel da Silva, o compositor do Hino Nacional Brasileiro. Foi sob a orientação desse mestre que Gomes compôs sua segunda cantata, A última hora do Calvário.

Em 1861, Carlos Gomes estreou sua primeira ópera, A Noite do Castelo, uma obra dedicada ao imperador Dom Pedro II. Dois anos depois, em 1863, ele apresentou a ópera Joana de Flandres, cuja repercussão foi tão positiva que lhe abriu as portas para realizar o sonho de estudar na Itália, o berço da ópera. Essa mudança para a Itália foi fundamental para o desenvolvimento de sua carreira internacional.

Poderíamos passar horas falando sobre o sucesso de Carlos Gomes na Itália, com obras como Se Sa Mingá, Nella Luna, O Guarani, I Moschettieri, Salvador Rosa, Saluto del Brasile (um hino em homenagem aos Estados Unidos), Maria Tudor, Lo Schiavo e Condor. Porém, para facilitar e enriquecer ainda mais essa celebração, preparamos um folheto contendo uma linha do tempo da vida e obras de Antônio Carlos Gomes. Nele, nossa audiência poderá pesquisar e relembrar sua trajetória e contribuições à música universal.

Impossível não abordarmos a grandiosa ópera Il Guarany, com libreto de Antonio Scalvini, baseada na obra de José de Alencar, que estreou no renomado Teatro alla Scala de Milão, em 19 de março de 1870. Na plateia, três brasileiros: seu irmão José Pedro de Sant’Anna Gomes, Antonio Carlos do Carmo e o cônsul do Brasil na Itália.

Após o sucesso em Milão, Carlos Gomes retorna a Campinas em agosto, sendo recebido de forma espetacular nos dias 18, 19 e 20. No dia 18, um número incontável de pessoas deslocou-se até Santos para recebê-lo, enquanto outros aguardavam em Jundiaí, onde a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí já operava. O trajeto de Jundiaí a Campinas foi feito no lombo de animais, e à medida que a caravana avançava pelas cercanias, mais pessoas se juntavam, formando uma grande comitiva.

Ao chegar às portas de Campinas, o cortejo foi recebido com fogos de artifício, girândolas e bandeirolas que decoravam todo o caminho. A caravana desceu a Rua Direita em direção ao palacete dos senhores Américo e Bernardino de Campos, no Largo da Matriz Nova. Para homenagear o maestro, a Orquestra Campineira (Philorphenica) contratou o ourives Carlos Deviene para criar uma coroa de ouro, um presente de grande valor simbólico.

No dia 19, às 15:00, uma comissão foi buscar o maestro para uma solenidade. Quando ele se aproximou da sala onde ocorreria o evento, a multidão, em respeito, abriu-se em duas filas, com as orlas guarnecidas por senhoras e meninas. Um silêncio religioso tomou conta do ambiente enquanto Carlos Gomes caminhava até o centro. Foi então que o ourives Carlos Deviene, responsável pela confecção da preciosa coroa, entregou-a à comissão, encarregada de oferecê-la ao maestro.

A coroa, formada por dois ramos de louro em tamanho natural, era um objeto riquíssimo, representando o reconhecimento de seu talento. A comissão, liderada pelo notável músico e maestro, Francisco Azarias, que fez um discurso emocionado antes de chamar Joaquina Gomes, irmã do maestro, para coroá-lo. A cena que se seguiu foi de pura emoção e beleza. Enquanto a orquestra tocava notas festivas, a atmosfera foi tomada por uma mudez reverente, como se todos estivessem em um estado de encantamento.

Parecia que, naquele momento, um anjo das harmonias pairava sobre a cabeça majestosa de Carlos Gomes, como se o próprio talento divino proclamasse: “Deus me deu, ai de quem tocar nele.”

Carlos Gomes, depois do sucesso de “Il Guarany”, passa a integrar o rol das celebridades musicais na Europa e no Brasil.

No ano de 1895, em viagem para Lisboa na busca de tratamento médico, dirigiu-se ao Real Teatro de São Carlos para assistir a uma apresentação da ópera Manon, de Jules Massenet. Durante um dos intervalos, a orquestra, sob a regência do maestro catalão Joan Goula I Soley, executou a Protofonia de Il Guarany. A performance foi aplaudida entusiasticamente, destacando-se o maestro, a orquestra e, especialmente, Carlos Gomes. Dom Carlos I, o rei de Portugal, que assistia à apresentação, chamou Carlos Gomes ao seu camarote e o agraciou com a Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, uma das mais importantes comendas do reino português, concedida a personagens ilustres em  reconhecimento ao mérito científico, literário e artístico.

Entretanto, já nesse período, Carlos Gomes sofria com um epitelioma na língua, diagnosticado como câncer, decorrente de anos de tabagismo. Fragilizado, aceitou o convite do governador do Pará, Lauro Sodré, para dirigir o Conservatório de Belém e mudar-se para lá. Durante meses, os paraenses aguardaram ansiosamente sua chegada, que só ocorreu em 14 de maio de 1896. No entanto, devido à sua frágil saúde, o maestro não conseguiu assumir suas funções no conservatório.

Carlos Gomes passou seus últimos quatro meses em Belém, sendo acolhido com carinho pelo povo paraense e pelo governador. No dia 17 de setembro de 1896, o jornal Folha do Norte noticiou seu falecimento, ocorrido na noite do dia 16, às 22h30.

O translado do corpo do maestro foi longo e só chegou a Campinas, sua cidade natal, em 25 de outubro de 1896. Carlos Gomes foi sepultado no Cemitério do Fundão, atualmente conhecido como Cemitério da Saudade, na cripta da família Ferreira Penteado.

Em 18 de setembro de 1903, Santos Dumont, a convite de César Bierrenbach, um dos fundadores do Centro de Ciências, Letras e Artes, teve a honra de colocar a pedra fundamental do monumento-túmulo de Carlos Gomes.

Em 29 de junho de 1904, após um ato religioso ministrado pelo Padre Ribas D’Avila, foi feita a transferência do corpo do maestro do Cemitério do Fundão para o a praça José Bonifácio, hoje Antonio Pompeo, local que compartilhamos neste exato momento. O túmulo do Tonico de Campinas, sem a escultura de Bernardelli, que hoje podemos apreciar, recebeu seu corpo, uma ata assinada por todos as autoridades presentes e um discurso emocionante proferido pelo tribuno João César Bierrenbach.

No dia 2 de julho de 1905, em um domingo marcado pela chuva, ocorreu a inauguração do monumento-túmulo de Carlos Gomes. O evento contou com o descerramento das esculturas criadas por Rodolfo Bernardelli, com a presença do presidente do Estado, acompanhado de diversas autoridades. Os discursos emocionantes proferidos por César Bierrenbach e Salvador de Mendonça marcaram a ocasião, exaltando o legado do grande maestro.

À tarde, as autoridades presentes se reuniram no prédio do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), que na época se localizava na Rua Barão de Jaguara. De lá, seguiram em uma caminhada pela Rua da Cadeia até a casa onde nasceu Carlos Gomes, situada na Rua Regente Feijó, número 1205. Nessa casa, uma placa de mármore foi colocada, registrando a data de nascimento do compositor e destacando sua residência em Campinas, cidade que tanto o enalteceu.

Essa cerimônia não só celebrou o talento imortal de Carlos Gomes, mas também marcou sua presença eterna na memória da cidade que o viu nascer e que sempre o reverenciou como um de seus filhos mais ilustres.

Portanto, peço aos senhores um minuto de silêncio para reverenciar a memória de Antonio Carlos Gomes, e encerrarmos nossa homenagem com a penúltima estrofe do poema “Orfeu Triunfante” declamado por Salvador de Mendonça durante a inauguração deste monumento túmulo:

Recebe, terra-mãe, de novo nas entranhas

De lágrimas ungido e maternais carinhos

O corpo de teu filho, o bardo das montanhas

Que traz ainda na fronte a marca dos espinhos

Aqui, de novo, o tens, mãe desvelada e bela:

Tornou enfim teu filho ao berço das colinas

E tornam a cantar as aves peregrinas.

Muito Obrigado

Campinas, 16 de setembro de 2024 17:00

Genaro Campoy Scriptore

Os números do Passado – Agricultura e Medidas Agrárias.

Numeros-do-passadopagina-300x246 Os números do Passado – Agricultura e Medidas Agrárias.

J. P Dilion – 15 de março de 1800

A invasão moura em Portugal e Espanha, ao longo de oito séculos, influenciou profundamente a construção das línguas espanhola e portuguesa, resultando na incorporação de muitos vocábulos de origem árabe. Entre as inúmeras palavras, podemos citar mais de cinquenta que começam com a letra “A”, como alambique, alquimia e alqueire.

A escolha pela palavra alqueire tem o propósito de destacar a história do campo e do agricultor, trazendo à tona práticas do passado que ainda se conectam com as dos dias atuais. No passado, os lavradores usavam a matemática prática para contar, calcular e garantir a subsistência por meio da produção agrícola. Desenvolveram, assim, uma sabedoria subjetiva, baseada na interpretação de atos simples, como plantar e colher.

Alqueire é uma palavra com origem persa e árabe, introduzida no português para definir a quantidade de sementes transportadas em um recipiente, geralmente feito de vime, varas ou cintas vegetais, conhecido como cesto. Durante muito tempo, não havia um padrão rígido para a quantidade de sementes colocadas nesses alqueires, cujos tamanhos variavam.

Segundo a obra de José Fortunato Barreiros [1], o valor de um alqueire foi fixado em 13,8 litros de sementes secas, baseado em um cesto de bronze que comportava 69 decilitros, conhecido como “meio alqueire”, termo assim definido pelo emérito  Presidente da Câmara de Lisboa, “Paulo de Carvalho Mendonça”. Duplicando essa medida, chegava-se a um alqueire, ou 138 decilitros (13,8 litros) de sementes secas.

No passado, os agricultores transportavam dois cestos de sementes (um alqueire) no dorso de um animal para o campo, onde plantavam em covas com duas ou três sementes, distantes aproximadamente um passo entre si. Um litro de sementes era suficiente para plantar 605 metros quadrados (m²), uma área de 11 metros x 55 metros, por exemplo. Para plantar meio alqueire (6,9 litros), o agricultor precisava de uma área de 4.174,50 m². Para planta um alqueire completo (13,8 litros) exigia 8.349 m² de área cultivável.

Em São Paulo, o sistema de plantio adotado era baseado no meio alqueire, com o agricultor debulhando 256 espigas de milho para encher dois cestos de 20 litros (ou 40 kg) de sementes para plantio em uma área de 110 x 220 metros ou 24.200 m² (605 m²x 40 litros). Fernando Pina Figueiredo[2], engenheiro especializado em cálculos, destacou que “20 kg de grãos de milho nem sempre correspondem a 20 litros, devido à densidade variável das sementes”. No entanto, para simplificação, era aceitável considerar que 1 litro equivalia a 1 kg de grãos de milho.

Os mineiros, por sua vez, utilizavam um sistema baseado em um alqueire completo, que exigia 48.400 m² (605 m²x 80 litros), para plantar dois cestos de 40 litros (ou 80 kg) de sementes, o equivalente a 512 espigas de milho debulhadas. A área necessária para esse plantio podia ser representada por um quadrado de 220 x 220 metros ou outros formatos.

Com o tempo, a diversidade de cestos e as variações regionais tornaram o alqueire uma medida imprecisa no meio agrário. Foi somente em 26 de junho de 1862 que, por meio da Lei 1.157, o imperador Dom Pedro II substituiu o antigo sistema de pesos e medidas pelo sistema métrico francês.

Na 12ª Sessão do Comitê Internacional de Pesos e Medidas (CIPM), realizada na França, em uma quinta-feira, no dia 2 de outubro de 1879, discutiu-se e aprovou-se o padrão do hectare, junto com o seu símbolo (ha), para ser utilizado como unidade de medida de superfícies agrárias. Esse momento foi crucial para a padronização de medidas agrárias, pois exigiu um esforço para aprender e implementar a equivalência entre as antigas medidas regionais e o novo sistema métrico, que seria adotado amplamente em diversos países. Essa transição teve impacto profundo no setor agrícola, simplificando a mensuração de áreas de plantio e facilitando a comunicação e regulamentação no campo.[3]

Hoje, no Brasil, a medida agrária oficial é o hectare, conforme estabelecido pela Lei nº 6.746/1979, conhecida como “módulo fiscal”. Essa unidade representa a área mínima necessária para a classificação fundiária das propriedades rurais, que podem ser classificadas como minifúndio, pequena, média ou grande propriedade, conforme especificado pela Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.

Entretanto, o Brasil, com sua vasta extensão territorial de 8.515.767,049 km², ainda enfrenta desafios relacionados a disputas e demarcações de terras, refletindo a complexidade de definir os tamanhos das propriedades rurais no país.

Tabela demonstrativa para Plantio de Alqueire, com Cestos de Sementes.

Alqueire Litros Cestos Area (metros²) Area Linear (metros)
1 605 11 x 55
½ 6,9 1 4.174,50 50 x 83,49
1 13,8 2 8.349 110 x 75,9

 

Tabela para medida de Alqueire no Brasil.

Alqueire Litros Cestos Qtde Espigas Area (metros²) Area Linear (metros) Estado
½ 40 (40 kg) 2 256 24.200 (605 x 40) 110 x 220 São Paulo
½ 32 (32 kg) 2 205 19.360 (605 x 32) 110 x 176 Mato Grosso (Alqueirão)
½ 45 (45 kg) 2 288 27.225 (605 x 45) 165 x 165 Norte do Brasil
1 80 (80 kg) 2 512 48.400 (605 x 80) 220 x220 Minas e Góias
1 160 (160 kg) 2 1024 96.800 (605 x 160) 220 x440 Bahia

 

[1] Barreiros, Fortunato José – Memória sobre os pesos e Medidas de Portugal, Espanha, Inglaterra e França que se empregam nos trabalhos do corpo Engenheiros e da Arma de Artilharia – Tipografia da Academia Real de Ciências, Lisboa, 1838, página 10 e página 63.

[2] Fernando de Pina Figueiredo, Engenheiro Civil Calculista de Estruturas e Fundações, sócio da empresa Pina Figueiredo Engenharia Estrutural Ltda, membro da Diretoria do Centro de Ciências, Letras e Artes, comentou: “20 kg de grãos de milho nem sempre dão 20 litros, pois a densidade aparente do milho, e de várias outras sementes, é muito variável. O conceito de densidade aparente, ou massa específica aparente, é a massa que cabe em 1 unidade de volume, ou seja, quantos kg (unidade de massa) cabem em 1 litro (unidade de volume). No caso da maioria das sementes, a massa que cabe no volume de 1 litro varia de 0,88 a 1,40 kg. Eu, em meus cálculos de bases de grandes silos, a favor da segurança utilizo o valor de 1,4 kg/litro, pois no silo são 12 metros de altura, ou mais, então o grão fica muito adensado. Mas no caso do agricultor do tempo antigo, que mexia com pequenos volumes, é aceitável sim considerarmos que em 1 litro caiba 1 kg de grãos de milho.”

[3] Procès-Verbal de la deuxième séance de 2 octobre 1879 – Présidence de M. Ibañez P.41 – Paris, Gautier-Villars, Imprimeur-Libraire du Bureau des Longitudes de L’école Polytechnique. Successeur de Mallet Bachelier, 1879

O Piano de Carlos Gomes

Piano-de-Carlos-Gomes01_1-259x300 O Piano de Carlos Gomes Piano-de-Carlos-Gomes02_1 O Piano de Carlos Gomes
Fotos do Piano de Carlos exposto no Museu Carlos Gomes de Campinas
Feitas por Genaro C Scriptore em 21 de junho de 2024

O estado do Pará recebeu e acarinhou Antonio Carlos Gomes desde sua chegada no vapor Obidense em 14 de maio de 1896 até seu último suspiro em 16 de setembro do mesmo ano. Não obstante tanto carinho, os governantes paraenses, autoridades e o povo prestaram sinceras homenagens funerárias ao maestro Carlos Gomes, filho de Campinas.

Carlos Gomes trouxe para o Pará poucos bens, pois já havia perdido a maioria deles, incluindo sua coleção de objetos de arte, joias e dinheiro. Salvou-se apenas o piano que o acompanhou até o Pará.
Gomes foi guiado ao Pará pelas mãos do ilustre governador da época, doutor Lauro Sodré, que criou o Conservatório de Belém e confiou ao maestro o cargo de Diretor.

Em 14 de março de 1914, o jornal “Jornal Pequeno” de Recife republicou uma entrevista com o maestro Gama Malcher, concedida ao jornalista João Alfredo de Mendonça do jornal “Folha do Norte” do Pará, em 15 de fevereiro de 1914[1]. Na entrevista, o maestro paraense Gama Malcher, em conversa amistosa com João Alfredo de Mendonça, confirma:

“…posso afirmar sem receio de contestação, que o piano de Carlos Gomes foi adquirido pelo benemérito doutor Lauro Sodré pela importância de 5:000$000. …Lauro Sodré teve conhecimento das dificuldades financeiras do maestro, e com aquele seu espírito generoso e protetor, mandou dar-lhe o dinheiro, mas não querendo nem de leve ferir os sentimentos do genial brasileiro, insinuou que essa importância representava a venda do seu piano ao Estado. …o piano continuou em poder de Carlos Gomes até a sua morte, pois o governador nunca pensou em privar o maestro da companhia de seu piano.”

Na entrevista, Gama Malcher que exerceu o cargo presidente do Instituto Carlos Gomes, confessa que após a morte de Carlos Gomes foram retirados de sua casa e enviados para o Instituto dois objetos: o piano e um relógio de parede de forma octogonal que uma mão amiga se encarregou de parar as 7 horas e mais ou menos 10 minutos, hora da morte de Carlos Gomes. Segundo Gama Malcher, o piano teria sido um presente do imigrante alemão e fabricante de pianos no Canadá, Heitzmann & Son, admirador de Carlos Gomes. E completava que o instrumento nunca havia se separado do maestro, acompanhando-o em viagens para Itália e Brasil.

Em 17 de outubro de 1917, o mesmo jornal de Recife, “Jornal Pequeno”, reeditou uma crônica do maestro Ettore Basio, originalmente publicada na “Folha do Norte”[2] do Pará, informando que, ao percorrer o sótão do Teatro da Paz em companhia do artista Corbiniano Villaça, deparou-se com o piano de Carlos Gomes em total abandono. Segundo Ettore, o piano teria sido recebido como prêmio pela participação de Carlos Gomes na Exposição Internacional de Chicago em 1893.

Conforme atesta a Revista do Centro de Ciências, Letras e Artes de 1927[3], um sócio correspondente do Centro de Ciências, o senhor Armando Nascimento, ao chegar em Belém, tomou conhecimento pela leitura dos jornais, provavelmente da “Folha do Norte”, de que no Teatro da Paz encontrava-se abandonado o piano de Carlos Gomes, que teria sido guardado durante muito tempo na Associação Comercial de Belém. Sem relações pessoais suficientes para ajudá-lo, o senhor Armando enviou uma carta ao então governador, doutor Enéas Martins, solicitando a guarda do piano para o Centro de Ciências, Letras e Artes, com a proposta de se encarregar de todas as despesas de embalagem e transporte do piano para Campinas. A resposta de sua carta não veio, e o governador foi deposto meses depois, assumindo o governo Lauro Sodré no ano de 1917, eleito indiretamente pela Assembleia Legislativa do Pará.

Tomando ciência do estado do piano de Carlos Gomes, o governador Lauro Sodré, pela amizade que nutria pelo maestro e na tentativa de salvar o objeto histórico de valor sentimental inestimável, confiou-o à Associação de Imprensa do Pará, cujo presidente na ocasião era o jornalista, escritor e político doutor Manuel Lobato, fundador da Academia de Letras do Pará e do Instituto Histórico do Pará.

Passaram-se quatro anos, e o piano de Carlos Gomes continuava em uma caixa, suja e empoeirada, no prédio alugado pela Associação Vasco da Gama, pois a Associação de Imprensa do Pará, sem sede própria, abandonara vários móveis e caixas, entre eles o piano de Carlos Gomes. A Associação Vasco da Gama já reclamara várias vezes para que fossem retirados os móveis e caixas da Associação de Imprensa do Pará.

O senhor Armando então solicitou ao Centro de Ciências que fosse feito um ofício ao governador que assumira em 1925 o governo do Pará, o médico doutor Dionísio Ausier Bentes, com o propósito de conseguir o piano de Carlos Gomes para o Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) na cidade de Campinas.

Por motivos não determinados, o ofício do Centro de Ciências se extraviou, fato conhecido somente depois da entidade receber em maio de 1926 um telegrama do senhor Armando pedindo providências da diretoria do Centro de Ciências. Sem se dar por vencido, Armando enviou uma carta para o secretário geral do Centro de Ciências, informando que, em conversa com o ex-deputado Manuel Lobato, que exercia o cargo de ajudante de ordens do governador eleito em 1º de fevereiro de 1925, doutor Dionísio Ausier Bentes, narrou um fato interessante que provavelmente seria um entrave para a vinda do piano para Campinas. Este fato já havia sido relatado pelos maestros Gama Malcher e Ettore Basio, em 1914 e 1917, respectivamente.

Assim descreve o insigne e brioso senhor Armando Nascimento as palavras trocadas entre ele e o doutor Manuel Lobato:

“Sua Excelência, o governador, poderia dar o piano para Campinas ou para o Museu, mas com a permissão do Congresso, pois que o piano é propriedade do Estado”.

A fala de Manuel Lobato deixou o Senhor Armando cismado a ponto de perguntar o motivo, a explicação para o piano ser propriedade do Estado. A resposta veio imediatamente:

“Sim, Carlos Gomes tinha caucionado o dito piano ao Estado, pela quantia de cinco contos de réis: que ele estando em certa ocasião em precárias condições e tendo recebido de seu filho ou filha, que adoecera, pedido de auxílio de certa importância e precisando socorrê-lo e tendo acanhamento de pedir à importância precisa a alguém, foi com o governador de então e ofereceu o piano, que se conservou em seu poder até sua morte, sendo somente retirado de sua casa logo após a sua morte”.

No mesmo mês de maio de 1926, duas revistas ilustradas do Rio de Janeiro publicaram matérias sobre o piano de Carlos Gomes, informando que seu destino seria o Museu Histórico Nacional. Uma delas foi a Revista Ilustrada Fon Fon, Ano XX, número 33, de 14 de agosto de 1926, e a outra foi a Revista Ilustrada Paratodos[4], de 8 de maio de 1926.

Quanto à revista ilustrada Fon Fon, o Secretário Geral não poupou palavras, elaborando um extenso texto que demonstrava que o articulista da revista e a Associação de Imprensa estavam trabalhando juntos com o objetivo único de enviar o piano para o Museu Histórico Nacional.

Fica claro pelas cartas trocadas entre o Senador Sodré e o Centro de Ciências que não havia nada de estranho, bairrista ou leviano entre o Senador e o Centro. Apenas um não sabia do interesse do outro, e Lauro Sodré sugeriu que o piano de Carlos Gomes fosse para o Museu Histórico Nacional, baseando-se na carta do Presidente da Associação de Imprensa do Pará, doutor Manuel Lobato.

O nobre Secretário Geral do Centro de Ciências, Celso Ferraz de Camargo, publicou na Revista do Centro de Ciências a carta de 1º de junho de 1926 do Presidente da Associação de Imprensa, doutor Manuel Lobato, ao Senador Sodré. Na carta ele informava que muitos sócios da Associação de Imprensa não concordavam com a saída do piano de Belém, mas que por concordância com o Governador e com Lauro Sodré, o piano seguiria para outra cidade. Aguardavam uma carta do diretor do Museu Histórico Nacional, insinuando que isso levaria tempo, o tempo suficiente para a reorganização da Associação de Imprensa.

Após receber o telegrama do Senhor Armando em maio de 1926, o Centro de Ciências emitiu um segundo ofício ao Governador do Pará, datado de 31 de maio de 1926, solicitando a guarda do piano de Carlos Gomes. No ofício o Centro nomeava e autorizava o Senhor Armando Nascimento, morador da Rua Senador Barata, 33-A, como procurador do presidente do Centro de Ciências, Carlos Francisco de Paula, para agir e tomar decisões referentes a este assunto junto ao governo do Pará.

Ao receber este segundo ofício do Centro de Ciências, o Governador doutor Dionísio Ausier Bentes mandou publicar em 17 de junho de 1926 nos jornais do Estado do Pará a seguinte mensagem governamental dirigida ao Congresso Paraense:

“Levo ao conhecimento do Congresso Legislativo do Estado, por intermédio do Senado, que o Centro de Ciências Letras e Artes da Cidade de Campinas, Estado de São Paulo, em longa e substanciosa exposição apela para que o Governo do Estado do Pará lhe conceda a guarda do piano que pertenceu ao grande e inolvidável maestro Antonio Carlos Gomes…
…Rogo, pois, ao Congresso Legislativo que se manifeste a respeito, votando, se achar acertado, uma autorização para ser dado àquele ou outro qualquer lugar condigno que mereça deter a preciosa relíquia.
Com os protestos de estima e apreço a Vossas Excelências
Saúde e Fraternidade.”

Em uma outra carta, agora de 20 de agosto de 1926, o Secretário Geral, senhor Celso Ferraz de Camargo, praticamente implora para que o Senador Sodré não apoie a ida do piano para o Rio de Janeiro.

“…rogo-lhe permissão para pedir, implorar mesmo, em nome do direito, da justiça, de Campinas, do Centro e no meu próprio nome: suspenda a vinda dessa relíquia para o Museu Histórico Nacional.”

O Senado Federal enviou para discussão o Projeto Nº 12 de 1926 em 15 de outubro de 1926, o qual não gerou muitas discussões, exceto por algumas observações de dois senadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará e à Associação de Imprensa do Pará: os senhores Luiz Barreiros e Abelardo Candurú, respectivamente. Ambos expressaram a opinião de que o piano não deveria deixar o Pará. Candurú inclusive solicitou que seu voto contra o projeto fosse registrado em ata, argumentando que o piano deveria permanecer no Instituto Histórico e Geográfico.

O projeto foi aprovado na Sala das Comissões do Senado do Estado do Pará em primeira discussão.

Em 19 de outubro ao ser anunciada a segunda discussão do projeto o senador Abel Chermont apresenta uma  emenda ao projeto:

“Artigo Único: onde se lê: ao Centro de Ciências, Letras e Artes da cidade de Campinas, Estado de São Paulo, diga-se: Instituto Histórico e Geográfico do Pará”.

A emenda não foi aprovada e o projeto passou pela terceira discussão no Senado em 20 de outubro com aprovação da maioria.

Na Câmara o projeto recebe parecer favorável em segunda e terceira discussões e foi aprovado unanimemente, no dia 30 de outubro de 1926.

Em 12 de novembro de 1926, foi aprovada a Lei 2.556, autorizando o Governo do Estado do Pará a tomar providências, concedendo ao Centro de Ciências, Letras e Artes a guarda do piano que pertenceu a Carlos Gomes.

O Decreto Nº 4.308, datado de 3 de dezembro de 1926, foi expedido e assinado pelo Governador Dionísio Ausier Bentes e pelo Secretário Geral do Pará, Deodoro de Mendonça.

O Centro de Ciências recebeu um ofício informando a aprovação da Lei e do Decreto através de seu sócio Armando Nascimento, que, por procuração, assinou o recibo de entrega do piano de Carlos Gomes pela Associação de Imprensa do Pará em 8 de dezembro de 1926.

O doutor José Lobo, Secretário do Interior do Estado de São Paulo, recebeu um telegrama do Governador do Pará comunicando que atendera ao pedido do Centro de Ciências, concedendo-lhe a guarda do piano de Carlos Gomes.

Imediatamente, o doutor José Lobo avisou o presidente da Câmara, doutor Antônio Lobo, para dar início aos procedimentos necessários junto ao Centro de Ciências, que já estava em contato com o Presidente do Estado de São Paulo, doutor Carlos de Campos, solicitando ajuda para o traslado do piano para Campinas.[5]

Entre 12 e 17 de novembro de 1927, Armando Nascimento informou à presidência do Centro de Ciências e ao Secretário Geral que o piano foi embarcado no navio “Itaquatiá”.[6]

Em 11 de março de 1928, o piano já se encontrava no Centro de Ciências, Letras e Artes, onde foi utilizado durante uma sessão cívica em homenagem ao Estado do Pará e ao seu governador.[7]

Acertou o maestro Ettore Basio ao se despedir do piano de Carlos Gomes com uma cronica de lamento e de ternura  publicado no Jornal “Folha do Norte” de 8 de dezembro de 1926, que pedimos licença por publicar apenas uma parte:

“Adeus meu velho amigo!”

Ettore Basio.

“Um decreto Governamental te destina e entrega ao Centro de Ciências Letras e Artes, terra natal de seu senhor.

Que lá a tua ossada, seja venerada e respeitada como merece….

…Foste, depois, segregado a uma fria e úmida sepultura no Teatro da Paz, em um compartimento sem luz, sem ar, habitado por cruéis roedores e nocivos insetos.
De lá foste salvo pela misericórdia e pelo coração generoso de Lauro Sodré… que te entregou a Associação de Imprensa do Pará.

Embora sem cordas, sem marfins e sem vida sonora, mudo, como é mudo o oceano em dia de calmaria, eras ainda o precioso piano de Carlos Gomes!

…que o que resta de ti, inspirem os teus novos e ilustres possuidores, o carinho, o amor, o respeito, sentidamente intensos que o Brasil te deve, porque traduziste as fulgurações do maior Genio da América do Sul – “Carlos Gomes”

Adeus meu velho amigo! Adeus! Parte em Paz!”

[1] Jornal Pequeno – PE Edição 0059 de 14 de março de 1914 páginas 1 e 2
[2] Jornal Pequeno – PE Edição 0241 de 17 de outubro de 1917 página 2
[3] Revista do Centro de Ciências Letras e Artes, Ano XXI 54 e 55 de janeiro de 1927, páginas 25 a 41
[4] Revista Ilustrada Para Todos… Ano I de 8 de maio de 1926, impressa nas Oficinas de “O Malho”, Rio de Janeiro, página 38.
[5] Jornal Correio Paulistano Edição 22784 de 26 de dezembro de 1926 página 2
[6] Jornal Correio Paulistano Edição 23091 de 18 de novembro de 1927 página 8
[7] Jornal Correio Paulistano Edição 23187 de 28 de março de 1928 página 3

Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra, o Barão de Jaguara

Barao-de-Jaguara-244x300 Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra, o Barão de Jaguara

Qualquer transeunte que se aventurar a conhecer a cidade de Campinas, inevitavelmente passará pela antiga Rua de Cima, também conhecida como Rua Direita, que hoje leva o nome de Rua Barão de Jaguara. Esta rua recebeu a denominação de Rua de Cima por estar situada no ponto mais alto da topografia do bairro Nossa Senhora da Conceição do Mato Grosso. Tropeiros e viajantes que chegavam ao bairro encontravam, no ponto mais baixo, uma segunda trilha denominada Rua de Baixo, hoje conhecida como Rua Lusitana.

A Rua de Cima foi assim chamada até o ano de 1848, quando passou a se chamar Rua Direita. Na sessão da Câmara Municipal de Campinas, em 1º de julho de 1889, por proposição dos vereadores doutor Ricardo Gumbleton Daunt, Otto Langaard e José de França Camargo, seu nome foi alterado para Rua do Barão de Jaguara. O intuito era homenagear em vida Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra, que em 20 de junho de 1888 havia recebido o título de Barão de Jaguara.

Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra era filho de Delfino de Ulhôa Cintra e Dona Antonia Benedita Dias da Silva. Nasceu em 12 de junho de 1837 e foi batizado em 23 de junho de 1837 na paróquia de Santa Ifigênia, em São Paulo, capital. O registro consta no Livro 3, folhas 112, frente e verso.

Seu pai, Delfino de Ulhôa Cintra, foi um político influente, atuando como deputado por São Paulo em diversas legislaturas. Além disso, ocupou cargos importantes, como vice-presidente, secretário e membro de comissões da Fazenda e Estatísticas.

No ano de 1855, durante o segundo ano da faculdade de medicina no Rio de Janeiro, Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra já trabalhava na enfermaria da Rua da Imperatriz, 133. Em 1857, realizou os exames do quarto ano e foi aprovado, sendo nomeado Praticante de Cirurgia nas repartições do Exército Imperial.

Em 1858, por decreto imperial de 28 de agosto, foi nomeado Oficial de Secretaria da Tesouraria de Minas Gerais. Após ser aprovado no sexto ano da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 1859, começou a clinicar no Hospital da Misericórdia, no Rio de Janeiro. Em 1860, teve uma passagem pelo exército, obtendo a patente de tenente-coronel como membro do Corpo de Arsenal de Guerra do Exército.

Em 1860, Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra casou-se com Adelina Torquato Marques de Oliveira, que passou a assinar posteriormente ao casamento como Adelina Henriqueta Cintra, adicionando ao seu nome o segundo nome de sua mãe. Adelina faleceu em 15 de agosto de 1880, em Mogi Mirim, de onde era natural, deixando uma grande prole de filhos.

De 1859 a 1861, Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra foi registrado como membro efetivo do Instituto Médico Brasileiro, que tinha como presidente o eminente Adolpho de Bezerra de Menezes Cavalcanti, que posteriormente se tornaria uma figura destacada do Espiritismo no Brasil.

Em 1861, Antonio estabeleceu uma clínica médica na cidade de São Paulo, inicialmente na Rua do Sabão, 139, e depois na Rua das Violas, 23, onde permaneceu até 1863. Em 1864, o Correio Paulistano narra sua chegada em Mogi Mirim, vindo de uma fazenda a sete léguas (aproximadamente 42 a 43 quilômetros), onde sua família se encontrava, para atender pessoas doentes na cidade.

Em 1865, Antonio formou um partido em Mogi Mirim e continuou a atender às necessidades médicas da cidade.

Em 1868, Antonio participou do grupo que iniciou contribuições para o prolongamento da Companhia Paulista de Estradas de Ferro para o ramal de Araraquara, Limeira, Capivari e Mogi Mirim, o que me leva a acreditar que sua fazenda ficava nas imediações de Limeira ou Jaguariúna.

Neste mesmo ano, foi nomeado Inspetor de Instrução Pública em Mogi Mirim e assumiu o cargo de Comissário Vacinador na cidade, do qual pediu exoneração em 1869.

Nas eleições para deputado provincial de 1869, apresentou-se como candidato do Partido Conservador pelo 3º distrito. Em 31 de janeiro de 1870, foi diplomado como Deputado Provincial pelo 3º distrito, na 18ª Legislatura (1870–1871), seguindo os passos de seu pai na política.

De 1871 até 1874, empenhou-se na construção da Estrada de Ferro Mogiana, que partia de Campinas com linha final em Mogi Mirim, e tinha um ramal até Amparo. Seus companheiros nessa jornada foram os conservadores Antonio de Queiroz Telles, Joaquim Egydio de Souza Aranha, José Egydio de Souza Aranha, Joaquim Quirino dos Santos e o comendador Zeferino da Costa Guimarães.

Em 1871, juntamente com seu amigo Antonio Gomes Guacury, Antonio dirigiu o hospital “Casa de Saúde Santo Antonio” em Mogi Mirim, que oferecia tratamento de baixo custo para escravos, colonos das fazendas e o público em geral. Em 2 de maio de 1872, anunciou que o hospital estaria sob sua direção exclusiva a partir dessa data.

Em 15 de dezembro de 1874, seu irmão, Delfino Pinheiro de Ulhôa Cintra Júnior, casou-se em Campinas com Angélica Machado Florence, filha de Hercules Florence. As testemunhas do casamento foram Hercule Florence e Antonio. Seu irmão seguiu os passos do pai na política, atuando como deputado conservador em diversas legislaturas, assim como Antonio.

Em 8 de agosto de 1876, faleceu seu sogro, Luiz Torquato Marques de Oliveira, proprietário da Fazenda Sete Lagoas, nas imediações de Mogi Mirim, hoje uma fazenda da Suco Cítrico Cutrale.

No final de 1876, em 17 de dezembro, Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra foi homenageado por seus amigos, que ao meio-dia foram recebidos em sua residência com uma banda de música. Em seguida, partiram para a estação de Mogi Mirim, onde seu retrato foi colocado na sala ao lado dos quadros dos presidentes da Companhia e do retrato de João Teodoro.

Perdeu sua esposa, Dona Adelina Pinheiro de Ulhôa Cintra, em 15 de agosto de 1876.

Em 1881, juntamente com seus pares José Guedes de Souza e doutor João Gabriel de Moraes Navarro, Antonio realizou algumas articulações para sua volta à Assembleia Legislativa, da qual havia se afastado em 1879, sem obter sucesso.

Casou-se em segundas núpcias no final de 1881 com Dona Antonia da Rocha Cintra. Dos dois matrimônios, teve uma grande prole, e seus biógrafos contam que ele teve entre 18 e 20 filhos.

Em 26 de outubro de 1886, Dom Pedro II e sua comitiva chegaram a Mogi Mirim, onde foram recebidos e hospedados por José Guedes de Souza. Alguns membros da comitiva foram hospedados por Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra.

Em 7 de maio de 1887, por graça do Imperador Dom Pedro II, Antonio recebeu a comenda da Ordem da Rosa. Em 14 de julho de 1887, foi nomeado 5º vice-presidente da Província de São Paulo.

Em 20 de junho de 1888, recebeu o título de Barão de Jaguara, na mesma época em que João de Ataliba Nogueira recebeu o título de Barão de Ataliba Nogueira.

Em 6 de abril de 1889, foi nomeado e assumiu a administração de São Paulo como o 52º Presidente da Província em 11 de abril. Durante seu governo, dedicou toda a sua atenção à epidemia de febre amarela que assolava vários pontos da província.

Em 30 de abril de 1889, a Câmara Municipal de Campinas enviou uma representação à presidência da Província, solicitando a convocação de uma sessão extraordinária da Assembleia Legislativa. Campinas necessitava urgentemente de um serviço completo de águas e esgotos para a municipalidade, e para isso requeria recursos orçamentários para canalizar águas e esgotos em curto espaço de tempo. A representação foi assinada pelos vereadores José Paulino Nogueira, Otto Langaard, Antonio Álvaro de Souza Camargo, Júlio de Mesquita, José de França Camargo e doutor Ricardo Gumbleton Daunt.

Diante da solicitação, o Presidente da Província convocou rapidamente a sessão extraordinária da Assembleia Legislativa, que expediu uma lei com o seguinte teor:

  • Autoriza empréstimos à Câmara Municipal de Campinas.
  • A Câmara Municipal de Campinas deveria pagar os empréstimos em parcelas semestrais com juros de 6% ao ano, em dois anos.
  • Autoriza a Câmara Municipal a criar um imposto predial para pagar os empréstimos.
  • Garante que a execução e fiscalização do serviço de águas e esgotos ficassem a cargo do Governo Provincial.

Imediatamente, o Barão de Jaguara decretou a resolução de um imposto de 9% sobre o valor dos imóveis, a partir de 1889-1890. De imediato, o Barão se prontificou e visitou pessoalmente as condições de Campinas e a miserável situação em que se encontrava. Entre as principais medidas, recomendou o uso de água fervida e a obtenção de água dos mananciais próximos da estação de Valinhos, incumbência que foi assumida por Walter John Hammond, engenheiro da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, sem custos para os cofres públicos.

Ele propôs ao governo imperial um serviço de desinfecção e limpeza das fossas e poços e solicitou a presença de seis médicos e oito internos, além dos que já estavam trabalhando na cidade no atendimento aos pacientes. O governo geral enviou os doutores Luiz Manoel Pinto Netto e Francisco Correa Dutra, o farmacêutico Joaquim Torquato Soares da Câmara, os estudantes do curso médico Alberto de Castro Menezes e Victor Pacheco Leão, e os enfermeiros João Francisco de Mello e Silva, Gregório Joaquim Leite e José da Costa Cordeiro para auxiliar o Doutor José Maria Teixeira, nomeado durante a administração de seu sucessor.

Mesmo diante dessas medidas, a epidemia continuava a vitimar a população, conforme descrito pelo Barão:

“Em Campinas, porém não tendo cedido a epidemia, continuando antes a vitimar de um  modo pavoroso a população, então muito reduzida pela retirada em massa de grande número de pessoas para as localidades vizinhas, resolvi nomear uma Comissão Médica de Socorros, composta -do doutor Francisco Marques de Araújo Góes como presidente e dos doutores Claro Homem de Mello, Jeronymo de Conto, Aristides Franco Meireles, Irineu de Britto e Philippe Jardim, como auxiliares, afim de proceder a um serviço completo de desinfecção, tanto nas habitações como nos hospitais e bem assim para tomar quaisquer, providências que julgasse acertadas para combater o mórbo epidêmico.”

A Comissão Médica, presidida pelo Doutor Araújo Góes, visitou em apenas 7 dias um total de 1308 casas, mostrando uma média de 187 casas desinfetadas diariamente.

A passagem do Barão de Jaguara pela Presidência da Província foi breve, mas sua eficiência e comprometimento como político competente e patriota devotado conquistaram a confiança do público e dos moradores. A rua Direita já era chamada de rua do Barão, mesmo sem ter sido oficialmente homologada pela Câmara Municipal.

Quando deixou a presidência da Província em 10 de junho de 1889, recolheu-se ao lar, mas sem abandonar sua vida pública. Ele foi eleito vice-presidente da Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais, vice-presidente do Banco Provincial de São Paulo (também conhecido como Banco dos Lavradores), fundador da Companhia Oeste Agrícola, presidente do Congresso Médico-Cirúrgico de São Paulo e membro da mesa da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

No ano de 1891, foi eleito senador pelo Partido Republicano Paulista, com 25.468 votos, nas eleições de 30 de abril, para representar São Paulo no Senado. Mantendo uma postura conservadora, defendia o discurso: “Podemos ser tão bons conservadores na República como fomos na Monarquia”.

Por conta de várias enfermidades, ausentou-se frequentemente do Senado e da capital, buscando refúgio em sua fazenda em Mogi Mirim ou em São Paulo. Faleceu em 14 de agosto de 1895, sendo seu féretro realizado no dia seguinte, 15 de agosto, às 10:00 da manhã.

Encerro a vida pública deste valoroso Paulista com uma tabela de suas conquistas políticas, de seu irmão e de seu pai.

Familia-Ulhoa-Cintra Antonio Pinheiro de Ulhôa Cintra, o Barão de Jaguara

O Combate da Venda Grande

 

1-19375-0000-0000-01-2 O Combate da Venda Grande

Óleo sobre Tela 65,6 x 100×74,6  Autoria atribuída a Henrique Manzo e disponível no Museu Paulista sobre o código 1-19375-0000-0000-01 Negativos em Papel e Cópias Contato de originais pertencentes aos descendentes de Hercules Florence e a Biblioteca Nacional

Discurso proferido no dia 7 de junho de 2024 em Homenagem ao Combate da Venda Grande

Digníssimo Presidente do Centro de Ciências Letras e Artes, Diretoria, Conselho, Autoridades Militares e Civis, convidados, senhoras e senhores presentes, neste momento em que rememoramos o passado de nossa cidade, revivendo o episódio cívico de amor à pátria e do valoroso espírito paulista e brasileiro, encarnado na memória histórica das instituições, como o Exército Brasileiro, a Polícia Militar, o Centro de Ciências Letras e Artes, e tantas outras, elevamos nossos pensamentos e revivemos nossos heróis, dignos guerreiros defensores de nossa liberdade e de valores cívicos inegociáveis na construção da sociedade.

Estas instituições e seus membros representam um legado de dedicação e sacrifício, firmando-se como pilares na defesa dos direitos e na promoção da paz e do progresso. Ao evocarmos estas memórias, reafirmamos nosso compromisso com os princípios de justiça, honra e patriotismo que sustentam nossa identidade coletiva. Que possamos, inspirados por esses exemplos de bravura e integridade, continuar a construir uma sociedade mais justa e solidária, honrando o legado de nossos antecessores e assegurando um futuro digno para as próximas gerações.

Sim, nossos heróis paulistas, de cerviz altiva, espíritos que dobram, mas não quebram, tomam forma em nossas mentes e corações, inspirando-nos em exemplos, modelando atitudes a serem seguidas. Assim como hoje, no século quinto antes de Cristo, Tucídides, ao narrar a História da Guerra do Peloponeso, guerra entre Esparta e Atenas, registra uma cerimônia cujo rito era homenagear os soldados gregos.

A  cerimônia grega apresentava o seguinte ritual:

• Os ossos e os restos do que sobravam dos soldados mortos eram expostos em um tablado, sob um toldo, por três dias;
• Os habitantes gregos traziam para os seus mortos as oferendas desejadas.
• No dia do funeral, ataúdes de cipreste eram trazidos em carretas e distribuídos um para cada tribo familiar que receberiam os ossos e restos dos soldados que fossem identificados.
• Um ataúde vazio recebia os ossos dos cadáveres que não foram identificados ou encontrados para o sepultamento.
• Por fim, todos os ataúdes eram depositados em um mausoléu oficial, escolhido para ficar no mais belo local do subúrbio da cidade.
• Os mortos em combate por seus méritos excepcionais, eram enterrados no próprio local da batalha.

Empresto as palavras de Tucídides, para honrar os mortos em batalha com uma oração fúnebre, que caberia perfeitamente em nossas homenagens de hoje:

“Falarei primeiro de nossos antepassados, pois é justo e ao mesmo tempo conveniente, numa ocasião como esta, dar-lhes este lugar de honra rememorando os seus feitos. Na verdade, perpetuando-se em nossa terra através de gerações sucessivas, eles, por seus méritos, transmitiram estes feitos de forma livre até hoje. Se eles são dignos de elogios, nossos pais o são ainda mais, pois aumentando a herança recebida, constituíram a história e a sociedade que agora possuímos, e, a duras penas nos deixaram este legado, a nós que estamos aqui e para as gerações futuras”

Assim como os antigos gregos homenageavam seus heróis com ritos solenes, nós também devemos perpetuar a memória dos nossos valorosos combatentes, revivendo suas histórias e mantendo viva a chama de seus ideais.

A Revolta Liberal de 1842 foi um movimento de resistência contra o centralismo do governo imperial, refletindo o espírito indomável e a busca pela autonomia que caracterizava os paulistas e outros brasileiros envolvidos na causa. No Combate da Venda Grande, as forças liberais enfrentaram bravamente as tropas do governo, demonstrando coragem e determinação em defesa dos ideais de liberdade e justiça.

O Combate da Venda Grande é precioso para nossa cidade e para nossa história. Devemos contá-lo, sempre que possível, para nossos filhos e netos. É uma das batalhas da Revolta Liberal de 1842, e deve ser lembrada como uma intentona capitaneada pelo Conselho da Sociedade dos Patriarcas Invisíveis, que tinha como líderes o padre Diogo Antônio Feijó, Raphael Tobias de Aguiar, Teófilo Ottoni, José Feliciano Pinto Coelho, o padre casado José Martiniano de Alencar, pai de José de Alencar, o padre José Bento Leite Ferreira de Mello, padre José Custódio Dias, Antônio Paulino Limpo de Abreu e outros que buscavam instaurar um governo mais representativo e menos autoritário. O confronto representou um dos muitos esforços para resistir às políticas centralizadoras e lutar por um Brasil mais justo e democrático.

A Sociedade dos Patriarcas Invisíveis, com sede no Rio de Janeiro era composta por figuras proeminentes e influentes, que acreditavam firmemente na necessidade de uma maior autonomia provincial e na manutenção dos valores constitucionais. Este grupo estava insatisfeito com as medidas centralizadoras da regência de Pedro Araújo Lima, o marquês de Olinda.

No sul do Brasil, desde 1835, a Revolta Farroupilha desafiava o governo imperial, que não conseguia encontrar medidas repressivas suficientes para abafar o conflito.

O regente equilibrava-se na condução do Império, defendendo o Imperador e a Constituição. Tanto o regente quanto a Sociedade dos Patriarcas Invisíveis tinham os mesmos propósitos, mas procediam de modos distintos.

Pressionados pelos liberais e pelo povo, o senado de maioria conservadora, na sessão da assembleia do dia 23 de julho de 1840, sob a presidência do “Marquês de Paranaguá” e com a presença de Sua Majestade o Imperador,  33 senadores e 84 deputados escutam a o juramento de Dom Pedro II que aos 14 anos é declarado apto a subir ao torno declaração da maioridade aos 14 anos

Um ano depois, em uma segunda-feira, no dia 18 de julho de 1841, Pedro II foi sagrado Imperador do Brasil e os festejos foram até o dia 24 de julho de 1841 quando foi realizado baile de gala no paço da Boa Vista com muito glamour.

Em primeiro de maio de 1842, devido às irregularidades nas eleições provinciais, Dom Pedro II dissolveu a Câmara dos Deputados. No dia 4 de maio, ele expediu o decreto número 157, que estabelecia as instruções e procedimentos para a realização de novas eleições provinciais. Diversos historiadores consideram essas ações do governo imperial como fatores fundamentais para desencadear a Revolução Liberal de 1842.

Os liberais, exasperados, decidiram destituir o Presidente da Província, o Barão de Monte Alegre, José da Costa Carvalho, e, simultaneamente, nomear Raphael Tobias de Aguiar como o novo presidente da Província.

Em 13 de maio de 1842, José da Costa Carvalho, Barão de Monte Alegre e presidente da Província de São Paulo, reportou ao ministro da guerra, José Clemente Pereira, os temores manifestados na capital e no interior de São Paulo.

“Os habitantes desta cidade, São Paulo Capital, têm sofrido graves temores pelo que observam na cabeça da oposição; eu, porém, não receio pela segurança da capital; existe no quartel uma guarnição de 300 homens, e, que passo a expedir ordens para que sejam elevados já, a 600; mas esta medida não pode ser realizada sem alguma demora. Para conter, pois, a cidade de Sorocaba e outros lugares que pretendam imitá-la, é indispensável que Vossa Excelência faça marchar para Santos, a maior força disponível de que seja possível lançar mão”.

Às dez horas do dia 17 de maio de 1842, na Câmara de Sorocaba, liberais aquartelados, povo, tropa da Guarda Nacional, políticos, autoridades civis e militares declararam Raphael Tobias de Aguiar como Presidente da Província de São Paulo. A justificativa foi que o imperador Dom Pedro II estava sob coação, dominado por uma associação facciosa.

No dia 18 de maio, às oito horas da manhã, quatro barcas a vapor – “A Especuladora”, “Paquete do Sul”, “Pernambucana” e “São Sebastião” – zarparam do porto do Rio de Janeiro com mais de 700 praças do 12º batalhão de caçadores, com destino a Santos.

No dia 19 de maio, mais 400 praças do batalhão dos fuzileiros seguiram pela estrada de Santa Cruz e embarcariam no vapor “Todos os Santos”, juntamente com o comandante em chefe do Exército, General Luiz Alves de Lima e Silva, na época, o barão de Caxias.

Caxias não precisou vir a Campinas; enviou o Coronel Amorim Bezerra com 3 cadetes do 12º batalhão para instruir os improvisados soldados conservadores. Uma força de soldados militarmente preparados, conhecidos como Guarda Municipal Permanente, chegou em Campinas vinda de São Paulo no dia 6 de junho de 1842, liderados pelo Capitão Pedro Alves de Siqueira.

Os soldados da guarda pessoal do Padre João José Vieira Ramalho, fundador da cidade de São João do Jaguary (hoje São João da Boa Vista), juntaram-se à Guarda Municipal Permanente. O padre Ramalho possuía uma milícia particular para defender seus interesses e sua fazenda, a Boa Vista.

A força local da cidade de Campinas, composta por soldados da Guarda Nacional, liderados pelo Coronel José Franco de Andrade e pelo Major Joaquim Quirino dos Santos, além de soldados sob o comando do Coronel Antônio de Queiróz Teles, Barão de Jundiaí, se uniriam aos combatentes do lado do Império.

No dia 7 de junho, o coronel Amorim Bezerra liderou 120 homens de cavalaria e infantaria em direção à fazenda da Lagoa, no Engenho da Lagoa ou Venda-Grande, exatamente aqui onde estamos. Este sítio, conhecido como “Venda Grande”, era uma parada comum para os viajantes que seguiam em direção à cidade de Limeira.

Olhando ao redor, deste ponto até onde nossa vista alcança, estavam reunidos não mais do que 300 ou 350 rebeldes, portando armas de caça, armamentos de pequeno calibre e até mesmo algumas de fabricação própria.

Os rebeldes eram fazendeiros, gente comum, alguns até participantes da Guarda Nacional, com laços familiares e de amizade com os liberais que elegeram Raphael Tobias de Aguiar, Presidente da Província de São Paulo, liderados e aconselhados pelo padre Diogo Antônio Feijó, o paulistano campineiro.

Em 31 de maio de 1842, uma carta de Tristão de Abreu Rangel, comandante em chefe das forças de Itu, para Raphael Tobias de Aguiar, traz a informação de que reforços liderados pelo capitão Boaventura do Amaral seguiriam de Itu para Campinas o mais breve possível; dizia a carta:

“O Boaventura os levará, porém, ele deve voltar, porque é o Único Oficial que temos de confiança”.

Em uma carta datada de 6 de junho de 1842, Tristão de Abreu Rangel confirma o envio de armamentos, escrevendo para Tobias de Aguiar:

“Para Campinas marcharam 130 praças de linha, 30 bestas carregadas com armamento, e uma peça…”.

Possivelmente tal peça, um canhão de artilharia, seria a mesma que ficou estacionada na Venda Grande e que nunca foi usada, por falta de preparo dos revoltosos, ou mesmo por estar inutilizada e que ainda assim foi enviada aos rebeldes de Campinas.

Depois do conflito, o sogro do primeiro casamento de Hercule Florence, o doutor Francisco Álvares Machado, comentava em sua família sobre a falta de estratégia, organização e preparo do exército de Raphael Tobias de Aguiar, comandado pelo Major Francisco Galvão de Barros França. Ele observou que o Major Galvão não percebeu que concentrar suas forças na defesa da estrada da Serra de Santos seria fundamental para proteger a capital e o interior da Província. Acreditava-se que essa estratégia tornaria quase impossível o avanço das tropas de Caxias. No entanto, para ter sucesso na defesa da estrada de Santos, construída com grande dificuldade por Aguiar, era necessário manter certo sigilo entre os revoltosos, o que não ocorreu.

O doutor Francisco Álvares Machado fechava o seu comentário dizendo:

“…, mas, meu amigo, em vez disto, onde foram proclamar a revolução, no entusiasmo generoso, porém irrefletido de um banquete.”

O despreparo dos revoltosos era tão evidente que soldados, equipamentos e armamentos podiam se deslocar entre Sorocaba e Campinas sem encontrar qualquer obstáculo. Mais de 200 praças e armamentos passaram por ali sem restrições logísticas, o que mais tarde contribuiu para a derrota no Combate da Venda Grande, liderado pelo exército do Barão de Monte Alegre.

Amador Bueno Machado Florence, então com 11 anos, acompanhou seu tio Matheus Álvares Bueno e relatou em um artigo na Gazeta de Campinas a jornada da família de Hercule Florence em direção a Sorocaba.

A comitiva da família Machado Florence encontrou-se com Antônio Manuel Teixeira, um dos líderes dos liberais, no caminho de Itu, especificamente no Salto de Itu. Uma milícia de paulistas revolucionários aguardava outros soldados de Sorocaba e Itu, que se dirigiam a Campinas e parariam aqui, no Engenho da Lagoa, nesta parte da antiga fazenda da Lagoa, chamada de “Venda Grande”.

Os rebeldes também aguardavam as tropas de Limeira, comandadas por Reginaldo de Moraes Salles, pai do doutor Antônio Carlos de Moraes Salles. Antônio Manuel Teixeira, Francisco Teixeira Nogueira, Luciano Teixeira Nogueira e Ângelo Custódio Teixeira Nogueira eram líderes naturais dos liberais em Campinas, todos descendentes do capitão Joaquim José Teixeira Nogueira, sendo sobrinho e irmãos do major Luciano Teixeira Nogueira, respectivamente.

Um fato curioso ocorreu na fazenda do major Luciano Teixeira Nogueira durante a Revolta. O único prisioneiro de guerra feito pelos rebeldes foi José Manoel de Castro, um jovem oficial que servia em Campinas e se tornaria um fazendeiro influente na região. Ele foi detido quando, inadvertidamente, visitou a fazenda do major. Levado para Sorocaba junto com a comitiva que conduzia o Padre Feijó, lá assumiu a função de impressor e tipógrafo do jornal “O Paulista”, editado por Hercule Florence. Desenvolveu uma grande amizade com Florence e ambos fugiram juntos durante a repressão final da Revolta, montados em um único animal, em direção a Porto Feliz. Ao retornarem para Campinas, foram anistiados.

Não há números exatos sobre os rebeldes, mas considerando as informações anteriores, estima-se que entre 300 e 350 soldados estavam acampados aqui, no Engenho da Lagoa ou Venda Grande.

Os corajosos paulistas acampados na Venda Grande não estavam totalmente preparados para enfrentar as forças de Caxias, mas possuíam uma força moral, idealista e libertária. Seu empenho e disposição poderiam ceifar vidas, mas também salvar muitos diante da força organizada e disciplinada dos soldados bem armados e eficientes na arte da guerra.

Doutor Ricardo, 38 anos após o evento, em sua obra “Reminiscências de Campinas”, faz uma exposição sucinta do combate, mas descreve com precisão o embate nos seguintes termos:

“Resolvendo os chefes do movimento em Campinas medir suas forças com as do governo, foram reunindo seu povo no sítio conhecido pelo nome de Venda Grande, na estrada de Limeira distante cerca de uma e meia légua de Campinas. Ali as tropas do governo prontamente assaltaram sem deixar-lhes o tempo preciso de se organizar, de modo que a vitória foi fácil e inglória…”

Nas edições de junho e julho de 1882 da Gazeta de Campinas, Amador Bueno Machado Florence, filho de Hercule Florence, descreve o combate com mais detalhes. Amador, então com 11 anos de idade, rememora diálogos de seu tio com os combatentes da Venda Grande, nos seguintes termos:

“Fomos surpreendidos sem que tivessem chegado Reginaldo com os de Limeira. Esperávamos descansados e alguns mesmo com profundo sono no velho sobrado e dependências, quando assomou no alto do pasto, em nossa frente a cavalaria inimiga, contra a qual logo que pudemos apontar as duas pecinhas de difícil manobra nos carretões de arrastar madeira…”

Reginaldo de Moraes Salles, pai do doutor Antônio Carlos de Moraes Salles, deveria chegar de Limeira com mais homens para se juntar ao grupo de combatentes, que não esperava o ataque do Coronel Amorim Bezerra.

A estratégia do comandante da força imperial, Coronel Amorim Bezerra, liderada pelo Capitão Pedro Alves de Siqueira, consistia em atrair a atenção dos acampados com uma parcela da cavalaria no alto da colina, enquanto outra parcela de soldados atacava simultaneamente pelo flanco e pela retaguarda, conforme registrado pelo filho de Hercule Florence.

“Mal sabíamos, porém, que só chamavam para aquele ponto nossa atenção, fingindo cair; o que queriam, era atacar pelo flanco, todo em capoeira, até nossa retaguarda, os periquitos de Bezerra. E, de fato, quando demos por eles, foi já pelo relampear das baionetas, e pelas cerradas descargas sobre o grupo dos nossos poucos, que puderam tomar as armas em desordem e rodear bravamente as duas pecinhas”.

A Guarda Municipal Permanente era conhecida como a força dos “periquitos” devido aos uniformes verdes enquanto os outros combatentes careciam de roupas de armas e até de calçados.

Cercados os rebeldes, houve debandada geral e ficaram cerca de 60 homens ao redor das peças de artilharia.

Amador Bueno Machado Florence relata um diálogo com Antônio Manuel Teixeira, descrevendo a fuga dos rebeldes. Eles conseguiram escapar trocando tiros com espingardas de caça, liberando um a um para dentro do mato, até conseguirem fugir. Os soldados imperiais, conhecidos como “periquitos”, usando fuzis com alcance de cerca de 260 metros, deixaram os mortos no campo de batalha.

No embate, as forças imperiais perderam apenas dois homens, um guarda nacional e um membro da milícia do Padre Ramalho, ambos feridos mortalmente. Do lado dos paulistas liberais, entre 19 ou 20 combatentes perderam a vida.

Doutor Ricardo Gumbleton Daunt narra detalhadamente a morte do Capitão Boa Ventura Soares do Amaral, militar e amigo de Tobias de Aguiar. Boa Ventura veio para Campinas com armamentos, com ordens para retornar à Coluna Libertadora em Sorocaba, mas preferiu ficar e lutar ao lado dos liberais. Ele recusou a fuga e morreu no combate, como descrito por Daunt:

“Comandava a mesquinha artilharia paulista no infeliz combate da Venda Grande um paulista da mais apurada nobreza— Amaral e Camargo — por nome Boaventura Soares do Amaral. Era capitão de 2ª linha e durante anos militou nas campanhas do sul contra castelhanos.

Melhor do que ele ninguém conhecia a impossibilidade de lutar com vantagem com o governo, porém preso por sentimentos exagerados de gratidão ao brigadeiro Raphael Tobias de Aguiar, ele acudiu ao chamado deste e aceitou o comando das peças, e marchou como o paciente ao cadafalso.

Houve a debandada dos provincianos, mas o capitão Boaventura não cuidava em si, recusou abandonar seu posto, e quando se viu cercado pelo inimigo que quis constituir-se prisioneiro de um oficial cujo camarada d’armas fora no Sul, a fim de assim obter a garantia da sua vida. Ele ofereceu sua espada ao referido oficial, e o infame, rindo-se virou as costas deixando o paulista a mercê da tropa.

Prenderam-no, e no ato, propositalmente feriram-no, levando-o para a casa da antiga fazenda que era sobrado. Ali o atiraram em uma cama e na mesma noite os soldados o assassinaram a sangue frio.”

Nos documentos enviados ao Barão de Caxias pelo tenente-coronel José Vicente de Amorim Bezerra, comandante em chefe do destacamento imperial, destacam-se os atos de bravura dos oficiais das diversas unidades de soldados, mencionando também o Capitão Pedro Alves de Siqueira, comandante da cavalaria, ferido levemente, assim narrados:

“Entre os oficiais e praças que mais se distinguiram, cumpre dever e justiça, recomendar a Vossa Excelência, o alferes do batalhão 12°, Carlos Cirilo de Castro, o 2º tenente João Jacques Godfroy, cadete de artilharia, alferes de comissão; Bernardo Joaquim Pereira, cadete fazendo serviço do oficial João José Pereira; sargento Joaquim Theodoro, ambos do batalhão 12°, e o sargento de guardas nacionais Antônio do Rego Dante”

Como o combate ocorreu no final da tarde e início da noite, o campo de batalha não pôde ser completamente explorado. Os relatos na imprensa mencionaram 17 mortos e 15 feridos. Esses números levaram à interpretação da morte de “Antônio Joaquim Vianna”, considerado o comandante e chefe dos paulistas de Campinas, que foi ferido e levado para o prédio da cadeia velha em Campinas.

Na cadeia velha, já estava detido o médico cirurgião Antônio Luiz Patrício da Silva Manso, considerado o principal autor da Rebelião de Cuiabá e acusado de incitar agitações em Limeira. Ele havia sido preso na noite de 5 de junho de 1842.

Patrício Manso não apenas tratou dos ferimentos de Antônio Joaquim Vianna, como também foi testemunha de seu testamento, conforme narrado pelo historiador Benedito Otavio em 1907:

“Ainda assim, Patrício Manso, não deixou de tomar parte na rebelião de 1842, que levantou São Paulo e Minas. Vencidos os liberais, foi preso, de nada lhe valendo o título de médico do paço, que exibiu. Aí, na cadeia velha, encontrou-se com Antônio Joaquim Vianna, seu amigo, aprisionado e ferido em Venda Grande. Patrício Manso assignou o testamento de Vianna, moribundo, e lhe assistiu a morte, guardando como relíquias o lençol e o colchão ensanguentados do valente rebelde…”.

O número de mortos no Combate de Venda Grande, nunca foi realmente desvendado, o relatório dos soldados do Barão de Caxias ficou com a contagem de 17 mortos, historiadores e cronistas falam em 19 ou 20 combatentes mortos, Amador Bueno Machado Florence, em sua crônica, quarenta anos depois do evento relaciona alguns mortos:

Boaventura do Amaral Soares de Camargo, Antônio Joaquim Vianna, “Negueime”, apelido de um primo de Joaquim Bonifácio do Amaral, o Visconde de Indaiatuba, João Evangelista Monteiro, um primo de Juca Salles, um indivíduo conhecido como João Francisco, possivelmente João Sapateiro, identificado por Amador Bueno Machado Florence como um alfaiate na época, um camarada de Bittencourt, provavelmente um dos colonos ou funcionários de Antônio Pio Correia Bittencourt que também participou do combate.

Da força Imperial somente um soldado do Padre Ramalho, pereceu. Quanto aos feridos, Amador Bueno Machado Florence, relaciona:

Antônio Alfaiate, baleado de revés na cabeça. Joaquim Cardoso, irmão de Manoel Cardoso, tio do maestro Santana Gomes e de Antônio Carlos Gomes, baleado no peito, que se recuperou graças ao acolhimento e ajuda dos sitiantes da redondeza e José Antônio da Silva, ferido no braço.

Aqui, neste solo que pisamos agora, ocorreu a batalha que hoje relembramos e que já foi cenário de muitas homenagens aos nossos heróis. Um destaque especial foi uma homenagem realizada por volta de 1860 ou 1862, liderada pelo Visconde de Indaiatuba, Joaquim Bonifácio do Amaral, líder do Partido Liberal e imediato no comando deste combate. Durante esse ato de piedade, o Visconde percorreu os caminhos onde seus camaradas tombaram, recolhendo os ossos dos valentes e transferindo-os para uma igreja em Campinas, cujo nome e local permanecem desconhecidos até os dias de hoje. Essa narrativa foi registrada por Amador Bueno Florence, e apesar de nossas pesquisas, o local exato da igreja e o destino dos ossos exumados ainda são desconhecidos.

Em nossa simples homenagem de hoje, peço aos senhores um minuto de silêncio, para homenagearmos os nossos combatentes do passado.

Assim como nos esforçamos para não deixar morrer este legado, assim o fizeram os gregos quinhentos anos antes de cristo, cumprindo o ritual de homenagem aos seus soldados retiro algumas palavras do discurso de Péricles:

“Contemplo diariamente a grandeza de minha cidade, por ela apaixonado, inspirado, reflito, que toda esta sociedade foi erguida pela conquista de homens de coragem, cônscios de seu dever, impelidos na hora do combate por um sentimento de honra…”

Este é o nosso sentimento pela história da nossa cidade e a nossa homenagem aos combatentes da Venda Grande.

Muito Obrigado.

 

Genaro Campoy Scriptore

Administrador de Empresa
Pesquisador e Escritor
Membro do Conselho Fiscal do Centro de Ciências, Letras e Artes

Memória social e o objeto biográfico.

Artigo-Estoico-CCLA-1024x277 Memória social e o objeto biográfico.

 

O cotidiano do cidadão de Campinas, suas interações com a cidade e a navegação pelas suas ruas não bastam para evocar a memória coletiva e social de uma localidade que tem suas raízes culturais, históricas e tradições, profundamente enraizadas em seu tecido urbano central.

O centro de Campinas é rico em objetos, símbolos, construções e marcos que, lamentavelmente, sofrem com atos de vandalismo, depredação e pichações. Isso evidencia que a preservação do passado não reside apenas nos monumentos e no património público, mas sim, na compreensão e no reconhecimento da história por parte da comunidade.

A valorização e a reconstrução do legado histórico campineiro, no presente, dependem do acesso à informação e do conhecimento da realidade histórica, que moldaram a sociedade local. É somente por meio desse entendimento que podemos verdadeiramente apreciar e preservar a herança cultural que nos foi deixada.

O Centro de Ciências, Letras e Artes é diretamente afetado pela deterioração que assola o entorno central de nossa urbe. Como membro desta venerável instituição, que abriga museu, memoriais, uma biblioteca e coleções de objetos biográficos e culturais, de grande valor histórico, busco contribuir por meio de pesquisas e publicações, para a compreensão e valorização dessas coleções.

Recentemente, ao preparar uma palestra sobre Antonio Carlos Gomes e ao examinar uma foto datada de 1936, redescobri a importância de uma peça localizada na entrada principal do Edifício “Cidade de Campinas”, na Rua Regente Feijó, 1251. Esse objeto, que ilustro neste texto, revela-se um testemunho significativo da história e do esforço na preservação do registro do local onde nasceu Carlos Gomes.

Minha compreensão inicial sobre tal objeto passou por uma transformação radical quando me aprofundei na pesquisa e descobri que foi criado durante as celebrações de inauguração do monumento-túmulo de Carlos Gomes, situado na Praça Antônio Pompeo. Essa peça foi concebida como parte da homenagem ao ilustre maestro e compositor de “Il Guarany”, marcando um momento solene em sua memória, após seu falecimento.

No dia 2 de julho de 1905, findas as solenidades de inauguração do monumento-túmulo, João César Bierrenbach convidou a comissão e uma grande massa de populares para seguirem a pé desde o monumento, pela Rua da Cadeia, hoje Rua Bernardino de Campos, até o prédio de número 50 da Rua Regente Feijó, que hoje corresponde ao número 1.251. Local onde nasceu Antonio Carlos Gomes, habitado na época pela família de Theodoro de Souza Campos.

Na frente da residência em que Carlos Gomes veio à luz, César Bierrenbach, em poucas palavras, convidou Rodrigo Octavio, Lúcio Mendonça e os guardas da marinha, Ignácio Amaral e Sebastião Lobo, para descerrarem a cortina que cobria a lápide comemorativa, fixada na parede frontal da residência.

Dois anos depois, no dia 19 de julho de 1907, o presidente do Centro de Ciências, Letras e Artes, doutor Souza Brito, recebeu do chefe da Locomoção, da Estrada de Ferro Mogiana, doutor Carlos William Stevenson, uma placa fundida em bronze. Esta placa se destinava a substituir a lápide de mármore negro que, por iniciativa de César Bierrenbach, havia sido descerrada em 2 de julho de 1905.

A placa trazia um escudo sobre duas colunas, ladeadas por palmas, coroado por uma lira entre dois ramos de café e carvalho. O letreiro no interior da placa trazia os mesmos dizeres da lápide de mármore original:

“Na casa aqui outr’ora existente em XI-VII-MDCCCXXXVI nasceu Carlos Gomes – Homenagem do Centro de Sciencias Letras e Artes a II-VII-MCMV”

A casa e a placa comemorativa coexistiram por mais de 60 anos, até a construção do Edifício “Cidade de Campinas”, que abriga salas comerciais. Esse edifício respeitosamente incorporou a placa de 1907 até meados de 2012, quando ocorreu o furto da placa de bronze da frente do edifício.

O Centro de Ciências, Letras e Artes não se daria por vencido. O vandalismo não intimidaria a diretoria, capitaneada pelo engenheiro Marino Ziggiatti e seus pares Duílio Battistoni Filho, Luiz Carlos Ribeiro Borges, Gustavo Mazzola, Arley Bonafé Zarattini e tantos outros incansáveis na preservação da memória social. Em 12 de setembro de 2012, conforme menciona a ata 205ª, foi instalada uma nova placa indicativa do nascimento de Carlos Gomes, exatamente com os mesmos dizeres da placa original, agora em cimento e mármore, patrocinada integralmente pelo senhor Arley Bonafé Zarattini.

A atual diretoria do Centro de Ciências, Letras e Artes mantém sua dedicação inabalável, enfrentando corajosamente os desafios que se apresentam, incluindo a triste realidade de sua sede parcialmente pichada e diversas estátuas pela cidade vandalizadas, entre elas o Monumento-túmulo de Carlos Gomes, o busto de César Bierrenbach, o busto de Guilherme de Almeida, o busto de Padre Anchieta e outros monumentos que também foram alvo desses atos de vandalismo.

O vandalismo contemporâneo, praticado nas madrugadas, transcende à mera agressão. Assemelha-se mais a um estilo de vida, praticado em segredo, com rostos ocultos da sociedade, revelando-se apenas aos seus pares.

Além disso, há aqueles que se dedicam à apropriação ilícita de peças metálicas, destinadas à venda ilegal para sucateiros e falsificadores, desprovidos de ética e moral. Esses indivíduos muitas vezes são rotulados como ignorantes culturais, vivem uma existência fugaz e desprovida de significado, deteriorada pelo uso indiscriminado de substâncias químicas que corroem, irreversivelmente, sua saúde mental, emocional e física.

Diante desse desafiante cenário do vandalismo, o fortalecimento do senso de pertencimento à comunidade e à sociedade, emerge como única solução promissora. Ao integrar cada vez mais o indivíduo nas relações sociais, podemos cultivar um orgulho coletivo, responsabilidade compartilhada e um compromisso renovado com a vida comunitária.

Investir na conscientização e na educação dos nossos jovens representa um caminho eficaz para mitigar comportamentos destrutivos e moldar cidadãos responsáveis e comprometidos com o bem-estar coletivo.

Minha concordância com Sêneca, em sua obra “Diálogos”, especialmente na Introdução, reflete minha convicção de que seus ensinamentos oferecem base sólida para abordar temas complexos, como o vandalismo e desafia-nos na busca de soluções inovadoras:

“…sempre haverá uma oportunidade, por mais adversos que sejam os tempos, de ser útil à comunidade, mesmo se for só sair para a rua e ser visto; não se deve intimidar a princípio ou, tímido, esconder-se no seu canto; pelo contrário, pode-se até ir para outra cidade ou terra que lhe seja mais favorável, pois o cosmopolitismo estoico lhe confere o status de cidadão do mundo.” (Diálogos – Introdução – página 41 Editorial Gredos, S.A – Madrid – Espanha

O olhar de dois metodistas para a Vila de São Carlos em 1852

Cafezal01-300x201 O olhar de dois metodistas para a Vila de São Carlos em 1852

 

 

Os reverendos metodistas, Daniel Parish Kidder e James Fletcher, maravilharam-se com a paisagem deslumbrante dos cafezais descortinada aos seus olhos, depois de mais de 160 quilômetros de cavalgada.

A importante cidade de Campinas, antiga Vila de São Carlos, local planejado para o descanso dos viajantes, emprestava toda sua formosura ao entardecer, para embelezar e impressionar os dois estrangeiros, que ao sair do mato grosso das campinas, uma muralha vegetal que separava a vila de São Carlos da Vila de Jundiaí, ficaram perplexos com as imagens obtidas por suas retinas.

O espanto e a admiração com a fertilidade da terra campineira, com as extensas planícies, pradarias ondulantes e quase todos os alqueires ocupados pelas plantações de café, que segundo os reverendos eram: “…plantações de café altamente cultivadas, das quais um verde profundo mais pareciam um prato gigante de vegetais verdes, espiando aqui e ali as grandes residências brancas dos fazendeiros”.

O entardecer de um dia do inverno em Campinas, sempre foi e será um espetáculo reservado para o olhar mais meticuloso, não seria diferente para os estrangeiros que das selas de seus cavalos, vislumbravam o céu em tom pastel ao noroeste, com o anoitecer índigo ao norte e nordeste, iluminado pelas enormes fogueiras espalhadas pelas planícies e pelos fogos de artifícios, que formavam incríveis efeitos e explosões semelhantes a um bombardeio a uma cidade sitiada.

Era véspera de São Pedro, e todo brasileiro com o nome de Pedro, sentia-se obrigado pela tradição religiosa, festejar com fogos de artifícios e fogueiras, que aqueceriam a noite dos festejos.

Na falta dos fogos, nas portas de suas casas, disparavam pistolas, mosquetes e bombas diversas enquanto crianças, mulheres e cidadãos festejavam o santo.

Foi assim, que os reverendos metodistas descreveram sua chegada na cidade de Campinas, guiados por dois guias paulistas, contratados para a expedição à província de São Paulo:

“…Meus dois guias paulistas me conduziram pelas ruas estreitas, e finalmente chegamos a uma fileira de pequenas casas caiadas de branco”.

As pequenas casas caiadas eram residências dos amigos dos guias, e os reverendos não pensavam em se hospedar com os amigos dos guias, porém, como não havia ninguém para levá-los até uma estalagem, um hotel que poderia, ou não, ter acomodações disponíveis. Resolveram, então, hospedarem-se ali mesmo, dado ao cansaço dos animais fatigados e convencidos pelas gentilezas dos donos das casas, embora as condições de acomodações não eram as ideais, mas com certeza eram  melhores do que tinham tido na noite anterior.

Segundo os reverendos, a residência em que se hospedaram era do carpinteiro Theobaldo ou Theobardo, que não havia construído uma casa de madeira, mas sim, da mesma substância encontrada na rua, terra batida, material das paredes e dos pisos.

Na manhã seguinte o reverendo pôde confirmar o interior da residência, pois na noite anterior estivera só no  pátio.

O reverendo descreve o carpinteiro como metade índio, meio mulato, e se tivesse que ter qualquer outra metade seria de meio português amarelo.

As palavras do reverendo, nesta hospedagem foram que: “Naquela noite, o sono foi de fato doce; e na manhã seguinte parti cedo, deixando minha bênção e mil réis com o gentil Senhor Theobardo. O primeiro ele aceitou, mas o último ele declinou, até que eu forcei aceitar como oferta de uma lembrança.”

No dia 29 de junho de 1852, a comitiva dos missionários, partiu em direção a Limeira, incorporando mais dois jovens alemães.

“A rota era ainda mais pitoresca do que a de ontem. A estrada fina foi ofuscada por árvores e vinhas selvagens; e os pássaros caricatos e cantores fizeram as dez léguas (mais ou menos 60 quilômetros) parecerem curtas.“Todas as casas à beira da estrada, e até mesmo as enormes igrejas, são construídas de lama, ou melhor, cobertas com barro. Os grandes conventos de São Paulo e a imensa igreja de Campinas, cujas paredes têm um metro e meio de diâmetro são compostos de terra batida”.

Todo o aspecto do país havia mudado: o cenário sublime da costa não estava aqui para ser encontrado, mas, em seu lugar, aquilo que me lembrava os Estados Unidos. Na novidade dos assentamentos e plantações que visitava, eu poderia facilmente ter acreditado estar na parte norte de Ohio.”

Hoje, quando estamos há cento e setenta e um anos da visita desses nossos amigos metodistas, presto a minha homenagem singela para a cidade de Campinas e à figura paterna, do avô italiano, que incorporou durante toda a sua vida os festejos de São Pedro.

 

Bibliografia:

Fletcher, James C. Rev., Kidder, Daniel P. Rev. – Brazil and The Brazilians Portrayed In Historical and Descriptive Sketches. Eight Edition – Boston: Little, Brown and Co – London: Sampson, Low, Son and Co. – 1868 p.  399 – 403. In: Scriptore, Genaro Campoy – Freguesia, Vila e Cidade de uma Campinas Velha – p. 91- 93

 

Recordações do Esporte Clube Noroeste em Bauru-SP.

Nasci em novembro de 1952, minhas lembranças dos jogos do Noroeste remontam desde o velho estádio “Alfredo de Castilho na Rua Quintino Bocaiúva, até aos jogos no “Ubaldo Medeiros”, que depois de 1964 voltou a se chamar “Alfredo Castilho”.

MFRB02172-810x536_AntigoEstadiored-300x198 Recordações do Esporte Clube Noroeste em Bauru-SP.

Frente do “Alfredo de Castilho na Rua Quintino Bocaiúva

Foto do Museu Ferroviário Regional de Bauru

No fatídico dia 23 de novembro de 1958, quando jogávamos contra o São Paulo, time da capital e do coração de minha avó, de meu pai e do meu; tivemos que deixar correndo o estádio, aos vinte e seis minutos do primeiro tempo, em virtude do incêndio que tomou conta das arquibancadas de madeira e destruiu algumas casas vizinhas ao estádio. O jogo foi interrompido e retomado na terça-feira, no período da tarde do dia 9 de dezembro, no estádio “Antonio Garcia”, casa do BAC, Bauru Atlético Clube.
Estes fatos são do conhecimento de todos os apaixonados do Esporte Clube Noroeste, porém o que eu gostaria mesmo é de registrar e relembrar a luta desta agremiação para obter o acesso a Divisão Principal do Futebol Paulista,

MFRBsemnumero-300x230 Recordações do Esporte Clube Noroeste em Bauru-SP.

Vista exterior do incêndio do estádio  “Alfredo de Castilho”  na Rua Quintino Bocaiúva.

Foto do Museu Ferroviário Regional de Bauru

Meu pai era um apaixonado pelo Noroeste, participou da diretoria do clube e o seu legado para mim, foram duas faixas conquistadas nos anos de 1953 e 1954, guardadas  em minhas caixas de recordações com muito respeito e  carinho.

Faixas-Noroeste-1954-1024x243 Recordações do Esporte Clube Noroeste em Bauru-SP.
Faixas-Noroeste-1953-1024x220 Recordações do Esporte Clube Noroeste em Bauru-SP.

Cresci ouvindo as histórias contadas por  meu pai sobre as epopeias,  as conquistas de 1953 e 1954, quando o time amador, comumente chamado de “Expressinho”, sagrou-se Campeão e Bicampeão, da cidade de Bauru.
Os fatos que descrevo abaixo, são de minhas memórias, e me facilitaram nas buscas e pesquisas realizadas em  periódicos da época, para verificar a veracidade dos fatos.
Entre os anos de 1960 e 1963, ao final dos jogos do Noroeste, voltávamos do “Ubaldo de Medeiros”, empreendendo uma caminhada pela rua Campos Salles, geralmente em meio de amigos e parentes, habitualmente parávamos alguns instantes na esquina da Rua Sabadino Scriptore para finalizar alguns comentários e nos despedir. Eu e meu pai, entrávamos pela casa de minha tia atravessando o quintal, até chegar na casa de minha avó, que já nos esperava com um café sempre muito doce e algumas fatias de pão feito em casa com manteiga caseira e açúcar.
Nestas ocasiões meu pai, me brindava com as alegrias que o Noroeste lhe trouxera, conseguindo o título de campeão da segunda divisão no ano de 1953.
Contava meu pai, que o Noroeste fora fundado em 1 de setembro de 1910 com o nome original de “Sport Clube Noroeste” e que o primeiro jogo teria sido em 20 de outubro de 1912, contra um time de São Manuel, fato que confirmei como verídico e publicado no Jornal Correio Paulistano, do domingo 27 de outubro de 1912, Edição 17695, página 4, confirmando um empate entre as agremiações.
Outro fato interessante que meu pai contava, era a derrota do Noroeste para o Lusitana Football Club por 3 a 2, em março de 1925, partida que assistiu quando tinha 7 anos de idade, fato que também pude comprovar como verídico.
Em 1942, o Lusitana Football Club nas disputas do quadrangular final do Campeonato Amador do Interior, fora desclassificado pelo Esporte Clube Taubaté, time forte que se tornara  campeão do certame amador da Federação Paulista de Futebol.
Meu pai contava que, dois anos antes de se casar, mais precisamente no ano de 1943, o Noroeste surgiria como força do interior, e depois de várias vitórias, chegaria ao quadrangular final do Campeonato do Interior de 1943, contra o algoz do Lusitana, o Esporte Clube Taubaté. Chegava, também ao quadrangular, o Taquaritinga que jogaria em casa, na disputa de uma vaga para chegar à final, com o Guarani de Campinas.
O Guarani venceu o Taquaritinga por 1 a 0 e o Noroeste foi derrotado pelo Esporte Clube Taubaté por 2 a 1, na cidade de Taubaté.
No jogo de Campinas, O Guarani venceu o Taquaritinga por 9 a 0 e tornou-se o finalista. Em Bauru, no dia 31 de outubro de 1943, o Noroeste venceu o Esporte Clube Taubaté, por 4 a 0, com um número impressionante de torcedores no velho estádio “Alfredo de Castilho”, da Rua Quintino Bocaiúva. Marcaram os gols, Crisanto, na primeira etapa e no segundo tempo marcariam Lâmonica, Crisanto e Adofrides.
Meu pai recitava a escalação do Noroeste neste episódio, sempre feliz e sorrindo:
Amélio, Xandu, Irineu, Chocolate, Sergio, Balbino, Lâmonica, Crisanto, Adofrides, Cirilo e Fontes.
A Federação Paulista de Futebol, marcou os jogos finais do Campeonato Amador do Interior para os dias 7 de novembro de 1943, domingo à tarde, e 10 de novembro quarta-feira à noite, no estádio do Pacaembu em São Paulo.
No domingo dia 7 de novembro de 1943, a preliminar foi feita por um amistoso entre o Santos e o Corinthians e o Santos venceu por 1 a 0. Na partida principal o Noroeste venceu o Guarani por 1 a 0, com os mesmos atletas da partida anterior. O gol da partida foi assinalado por Fontes aos vinte e cinco minutos do segundo tempo, recebendo um passe de Crisanto, com uma finalização da ponta esquerda em um chute alto. Neste jogo, Amélio fechou o gol e os zagueiros  foram os destaques do time.
Na quarta-feira, dia 10 de novembro de 1943, a preliminar seria efetuada pelo Palmeiras versus Juventus, porém não se realizou.
O Noroeste se apresentou com o mesmo time e o Guarani com os atletas:
Tito, Tiziani, Couto, Fricote, Silva, Pavuna, Bibiano, Batista, Zuza, Piolim e Machadinho.
Em um jogo muito disputado Noroeste e Guarani ficaram no 0 a 0, o que deu o título de Campeão do Interior para o Noroeste.
O Campeão do Interior, inicia a profissionalização de seus atletas em 1948, passa a ter dois times, um para jogar o Campeonato Amador da cidade de Bauru e outro para disputar o Campeonato Paulista.
As faixas que guardo com muito carinho e respeito, mostradas acima se referem ao “Expressinho”, o time amador Campeão em 1953 e Bicampeão em 1954.
O ano de 1953, foi coincidentemente, o ano em que o Noroeste teve a sua grande conquista de acesso ao Campeonato Paulista.
O Linense fora Campeão da Segunda Divisão, em 1952, o que lhe garantiu o direito de disputar o Campeonato Paulista da Primeira divisão.
Dada a proximidade de Marília e Lins com a cidade de Bauru,  torcedores de Linense e Marília cultivaram uma rivalidade com os bauruenses, que até hoje, é motivo de renhidas disputas no futebol.
Apresentaram-se para a disputa do Campeonato da Segunda Divisão de 1953, 29 times, sendo escolhidos pela Federação Paulista de Futebol apenas 19, mais o Jabaquara que caíra da primeira para a segunda divisão. O sistema da escolha tinha um critério de pontuação baseado na performance dos clubes, considerando renda, tradição, população e números de associados. Os vinte times escolhidos foram divididos em três séries, tendo seu início marcado para o dia 22 de novembro de 1953 e seu término previsto para o final de maio de 1954.
O Noroeste foi designado para o Grupo Verde onde estavam os seguintes times:

  1. Tupã Futebol Clube, de Tupã;
  2. São Paulo Futebol Clube, de Araçatuba;
  3. Bauru Atlético Clube, de Bauru;
  4. Esporte Clube Noroeste, de Bauru;
  5. Clube Atlético Piracicabano, de Piracicaba;
  6. Marília Atlético Clube, de Marília.

O Grupo Amarelo trazia os seguintes times:

  1. América Futebol Clube, de São José do Rio Preto;
  2. Rio Preto Esporte Clube, de São José do Rio Preto;
  3. Botafogo Futebol Clube, de Ribeirão Preto;
  4. Palmeiras Futebol Clube, de Franca;
  5. Associação Atlética Francana, de Franca;
  6. Associação Desportiva Araraquara, de Araraquara;
  7. Associação Ferroviária de Esportes, de Araraquara;

O Grupo Azul agrupava os times:

  1. Corinthians Futebol Clube, de Santo André
  2. São Caetano Esporte Clube, de São Caetano;
  3. Paulista Futebol Clube, de Jundiaí;
  4. Esporte Clube Taubaté, de Taubaté;
  5. Clube Atlético Bragantino, de Bragança Paulista;
  6. Esporte Clube São Bento, de Sorocaba;
  7. Jabaquara Atlético Clube, de Santos.

O Noroeste foi sensacional na fase de classificação, vencendo quase todos os times de forma implacável.
Foram classificados pelo Grupo Verde, Esporte Clube Noroeste e Marília Atletico Clube. Pelo Grupo Amarelo o América Futebol Clube e a Associação Ferroviária de Esportes. Pelo Grupo Azul, O Paulista Futebol Clube e o Clube Atlético Bragantino.
Os seis classificados em turno e returno, jogariam uns contra os outros e o primeiro colocado ganharia o direito de subir para a primeira Divisão do Campeonato Paulista.
O Noroeste, nos dez jogos realizados na fase final, teve um desempenho fantástico, perdendo apenas duas vezes, uma em Araraquara, para a Ferroviária, pela contagem de 5 a 3, em razão do ataque fantástico do seu oponente, mesmo assim, conquistou o primeiro lugar com uma rodada de antecedência. Com um time totalmente desfigurado na última rodada, perdeu para o Clube Atlético Bragantino, obtendo a classificação final por pontos ganhos, demonstrada abaixo, onde um jogo somava dois pontos pela vitória e um ponto pelo empate.

Pontuação Final do Campeonato da Segunda Divisão 1953
Times Pontos
1 Esporte Clube Noroeste 16
2 Associação Ferroviária de Esportes 13
3 Paulista Futebol Clube 10
4 América Futebol Clube 8
5 Marília Atlético Clube 5
6 Clube Atlético Bragantino 4

Nesta fase o Noroeste fez dois jogos muito interessantes com o Marília Atlético Clube. No primeiro turno, em uma partida tumultuada, venceu por 2 a 1 em Marília, no dia 18 de abril de 1954. No segundo turno, venceu em Bauru por 2 a 0, no dia 23 de maio de 1954, no estádio “Alfredo de Castilho”, da Rua Quintino Bocaiúva, onde comemorou o primeiro título de Campeão da Segunda Divisão, sendo que mesmo com uma rodada faltante, nenhum time poderia alcançá-lo na classificação final.
A partida do domingo de 18 de abril de 1954, teve um incidente muito sério que foi registrado em vários periódicos do Brasil.
O jogo era muito esperado, o Noroeste na primeira colocação precisava de pelo menos um empate para se distanciar do segundo colocado, que naquele momento no primeiro turno, era o Marília.
A partida estava muito disputada e tinha como árbitro o senhor José Benedito Siqueira Filho. Aos quarenta minutos do primeiro tempo, o atacante Cilno do Marília, marcou o gol que dava vantagem ao time local. Na volta para o segundo tempo o Marilia executa uma estratégia de se retrancar na defesa, com o objetivo de manter o resultado.
Aos vinte e cinco minutos do segundo tempo depois de martelar a defesa do Marília, Brotero conseguiu assinalar o gol de empate que recolocava o Noroeste no primeiro lugar, distanciando-se do seu oponente e com um ponto perdido na tabela. Isto fez com que o Marília, voltasse a agredir a defesa do Noroeste, sendo que em um destes momentos o árbitro deixou de assinalar uma penalidade máxima, muito visível, no atacante Doquinha do Marília Atlético Clube, que foi aterrado violentamente pela zaga do Noroeste, fato constatado por toda a imprensa que cobria o evento. A partida seguia muito tensa, ao apagar das luzes, nos últimos minutos, Brotero em um rápido e fulminante contra-ataque marcou o gol da vitória do Noroeste.
Ao encerrar a partida, o árbitro recebeu a explosão de ira dos torcedores de Marília, que invadiram o gramado e agrediram o trio de arbitragem, mais o representante da Federação considerando-os tendenciosos e parciais. Um soldado da força pública na tentativa de parar as agressões, de forma imprevidente, sacou de uma arma e acabou por alvejar no abdômen Arnaldo Martins, um rapaz de 22 anos envolvido no tumulto, que foi operado na Santa Casa e não morreu, pelo menos naqueles dias. O arbitro quebrou umas costelas e sofreu escoriações, bem como sofreram escoriações os bandeirinhas e o representante da federação.
O Noroeste neste dia teve a seguinte escalação:
Sidnei, Osvaldo, Vila, Faria, Mingão, Amaro, Colombo, Zeola, Ranulfo, Brotero e Marini.
O Marília foi escalado com Tonico, Nelson, Atílio, Ditinho, Valente, Luiz, Cilno, Hélio, César, Doquinha e Vave.
Tiveram atuações destacadas durante a partida os jogadores Brotero e Faria do Noroeste. No time do Marília destacou-se o jogador Atílio.
Hoje em pleno 2023, ano em que vi o Noroeste lutando para ascender a Serie A do Campeonato Paulista, penso que falta inspiração aos dirigentes, jogadores e torcedores para se espelharem nestes momentos gloriosos que o Esporte Clube Noroeste construiu ao longo do último século. São nestes momentos que repousam forças latentes aguardando nobres espíritos que as abracem com o corpo e a alma para repetir as façanhas da agremiação rubra, que pode, e, deve ser recolocada no lugar a que pertence e merece.